Boletim (Anti)Segurança #44
Boletim (Anti)Segurança #44
Uma década de luta, uma vida inteira dedicada à memória:
os 10 anos da Chacina de Osasco e Barueri
Onde quer que responsabilidades sejam buscadas, costuma ser o
instinto que quer julgar e punir que aí se busca. (...)
Observando mais detidamente, é a guerra que produz esses efeitos,
a guerra por instituições liberais, que, como guerra, faz perdurarem
os instintos iliberais. (...)
Nossas instituições nada valem: acerca disso há unanimidade.
O problema não está ligado a elas, mas a nós. (...)
Todos os meios pelos quais, até hoje, quis-se tornar moral a
humanidade foram fundamentalmente imorais.
Friedrich Nietzsche
E assim se passaram 10 anos...
Em 2015, nos inícios de um processo ainda em curso de grandes mudanças institucionais no Brasil, a região metropolitana de São Paulo foi palco do que ainda hoje é a maior chacina do estado em toda a sua história. Os números variam entre notícias de jornais e portais da internet, inquéritos policiais e processos penais, mas o que sabemos é que, entre os dias 8 e 13 de agosto de 2015, ao menos 29 pessoas foram alvejadas por tiros de pistola de forma mais ou menos aleatória nas cidades de Carapicuíba, Osasco e Barueri. As notícias registraram que um grupo encapuzado, formado por mais de uma dezena de policiais, espalhou o terror em resposta vingativa à morte de policiais - primeiro um PM em posto de gasolina e, dias depois, um guarda civil municipal de Barueri em um mercadinho da região - que faziam bicos de segurança nos comércios da região.
Diante de tais fatos, enveredar pelo campo do juízo e da investigação criminal é tratar como razoável e normal tamanha violência praticada de forma regular por profissionais da segurança e burocratas armados, sejam elas legais ou ilegais. No centro desse evento macabro estão as execuções do dia 13 de agosto, quando homens encapuzados entraram no bar do Juvenal - localizado ao final da Avenida Diretriz, na exata fronteira administrativa entre Barueri e Osasco - e atiraram contra as pessoas que lá estavam, matando oito e ferindo duas delas. Um dos sobreviventes, que ficou com graves sequelas, faleceu no ano passado. O caso é relativamente conhecido e os detalhes podem ser acessados através da imprensa em geral por aqueles que tiverem interesse¹. O que importa aqui é uma outra face que esse caso de 10 anos revela.
Justamente nesta década, o país se debate em arranjos e desarranjos institucionais, passando por ferrenhas disputas nas altas rodas com golpes e contragolpes, disputas de narrativas, heróis e vilões, políticos amados e odiados, juízes salvadores e perseguidores, policiais e militares alçados à condição de celebridades, uma profusão de busca por segurança institucional, jurídica, pessoal, física, pública etc. e etc. Tudo isso é enquadrado no discurso internacional mais amplo, sobre uma crise global das democracias ocidentais modernas, disputas sobre os sentidos e o conteúdo dos direitos humanos e busca por estabilidade institucional, econômica, política e social.
No entanto, quando se desce ao cotidiano de casos como esse, chegamos à conclusão de que a verdade da democracia no Brasil pode ser revelada, inteira, no caso da Chacina de Osasco e Barueri em 2015. Uma democracia que, no LASInTec, convencionamos chamar de securitária, pois se assenta na busca por segurança em suas várias dimensões contemporâneas, inclusive na produção de uma “sensação” de segurança, seja lá o que se entenda por essa estranha expressão. Ao dizer isso, não colocamos ou disputamos uma questão de escala, pois aquém e além dos acordos e dos acertos entre as altas rodas, as formas imediatas da democracia hoje podem ser observadas neste caso, tão escandaloso quanto rotineiro, de execuções brutais. Como já se cantou pelos becos e pelas vielas da cidade de São Paulo, a verdade está presente nos jornais e nas ruas.
O LASInTec trabalha desde 2019 junto à Associação 13 de Agosto e demais grupos universitários e de movimentos sociais que se ocupam do caso. A Chacina, como também se sabe, tem uma condenação judicial que, na época, atingiu 4 policiais, dos quais dois foram absolvidos. A defesa, além de atuar em uma linha de deslegitimação das vítimas e testemunhas, postulou teses absurdas, aceitas pelo juízo. Um exemplo evidente foi a incorporação acrítica do argumento de que a troca de mensagens de texto entre os réus absolvidos, ocorrida no início e no final da chacina, e que parecia indicar a coordenação das ações, foi apagada por um dos réus apenas para "liberar espaço na memória"². O desfecho processual foi a absolvição de um policial militar, hoje reintegrado à corporação da PM-SP por ato do atual governador, e de um guarda civil metropolitano da cidade de Barueri. Nesses seis anos, participamos de inúmeras reuniões na casa de Zilda Maria de Paula, linha de frente da Associação 13 de Agosto; de uma série de atos públicos no Munhoz Jr./Mutinga e no calçadão de Osasco em frente à estação Osasco da CPTM; de um tenso ato, em meio às restrições da COVID-19, em frente ao Fórum Criminal de Osasco, no Jardim das Flores, que acabou inocentando os dois policiais acusados de envolvimento na chacina; e de muitos almoços, cafés, rodas de conversas, mesas de debate e momentos de partilha em meio ao luto e a memória obstinada das mães.
No ano passado, acompanhamos o triste e doloroso ritual de exumação dos corpos executados no cemitério municipal de Barueri e seguimos agora com a construção desse ato de 10 anos que, pela data redonda e os acontecimentos da década, se mostra uma efeméride que oferece um diagnóstico brutal da atualidade em que vivemos. Parte dos registros dessas atividades – porque nem tudo deve ser público e comunicado, diga-se de passagem – pode ser encontrada em textos, fotos, relatos, depoimentos e vídeos que qualquer pessoa pode acessar no site do LASInTec e em outros meios que repercutiram o caso, assim como o trabalho de registro, análise política e militância que fazemos em conjunto a partir dele.
Mas por que pensar nesses dez anos como a marca de um evento que revela a verdade de nossa democracia atual? Podemos citar curiosas relações que podem ser tratadas como coincidências apenas pelas mentes que se guiam pela miséria da lógica de causa e consequência, mas que, sob minuciosa análise, se revelam entre o caso e a história recente do país. A começar pelas balas, pois a munição utilizada pelos policiais nas execuções em 2015 saiu do mesmo lote de provisão para armas de calibre 9mm que foi desviada da Polícia Federal de Brasília e reapareceu, em 2018, como as balas que executaram a vereadora Marielle Franco e seu motorista Anderson Gomes no centro da cidade do Rio de Janeiro. O atual ministro da Suprema Corte do Brasil, Alexandre de Moraes, era o Secretário de Segurança Pública do estado de São Paulo à época; o governador do estado, em 2015, era Geraldo Alckmin (PSDB), hoje vice-presidente do Brasil pelo PSB e figura de proa dos interesses dos capitalistas brasileiros no mundo; o atual Secretário de Segurança Pública, o capitão da Polícia Militar Guilherme Derrite (PL), estava à época lotado na 3ª Companhia do 14º Batalhão da PM-SP, situado no bairro de Quitaúna, Osasco. Ele fez carreira como youtuber policial, virou deputado com discurso de matador e, no final de 2023, inaugurou a nova sede do batalhão, entregando medalha para o prefeito da cidade³. As altas rodas andam em círculo enquanto o sangue escorre pelas ruas.
Em 2017, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) passou a produzir, junto ao Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), o Atlas da Violência, que compila dados da violência letal no Brasil a partir de dados do Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM) do Ministério da Saúde. Na época da criação do Atlas, o dado que chamou a atenção no relatório foi o aumento em 10% na taxa de homicídios no país entre 2005 e 2015, chegando a quase 60 mil mortes por ano⁴. O lugar comum é comparar esse dado a números de guerra, mas, numa década marcada pelo que ficou conhecido como “Guerra ao Terror” - após os atentados do 11/09 nos Estados Unidos -, o comparativo que chamou a atenção da imprensa foi que “todos os atentados terroristas do mundo nos cinco primeiros meses de 2017 não superam o número de homicídios registrado no Brasil em três semanas de 2015”⁵. A imprensa registrava que, de acordo com levantamento da Esri Story Maps e da PeaceTech Lab, 3.314 pessoas morreram no mundo em 498 ataques. Do outro lado, segundo registros do SIM, “cerca de 3,4 mil pessoas foram assassinadas no Brasil a cada três semanas em 2015⁶”.
Também em 2017, já no primeiro dia, 56 pessoas foram brutalmente executadas no Complexo Penitenciário Anísio Jobim, em Manaus; um motim da PM do Espírito Santo, às vésperas do carnaval, deixou um rastro de mais de 200 execuções em cerca de uma semana, um caso até hoje pouco lembrado no Brasil, em que se destacou, inclusive, a estratégia de difundir pânico através de aplicativos de mensagens instantâneas, bem como as motivações eminentemente político-eleitorais do motim, com participação direta de familiares de policiais e de parlamentares-polícia.
Hoje, por meio do mesmo Atlas da Violência, se comemora a redução dessas taxas anuais de homicídios que, em 2018, chegou a quase 60 mil pessoas executadas, apontando uma tendência de queda ao diminuir para 45.503 em 2019. O Atlas de 2025 registra 35.365 execuções em 2024, frente a 37.754 em 2023. O destaque de aumento para este ano fica justamente para os assassinatos cometidos por policiais⁷. A despeito do que se aponta como uma consistente queda na taxa e no número absoluto de homicídios no Brasil, quase 40 mil pessoas executadas por ano segue sendo um dado assustador do terrorismo de Estado praticado pelas políticas de segurança pública. Não cabe discutir aqui as alegadas causas dessa queda, que vão desde o domínio territorial local de facções criminosas e milícias, passam por programas de segurança pública cidadã que seguem o conceito de “Territórios de Paz” criado em 2007 pelo PRONASCI (Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania), e se desdobram em programas como as extintas UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora) cariocas, o “Estado Presente” capixaba, o “Juntos pela Segurança” pernambucano ou o “Bahia pela Paz”. Além disso, o mesmo Atlas registra o aumento do número de pessoas desaparecidas no país. Embora um desaparecimento possa corresponder a múltiplas causas, também pode ser uma forma pela qual agentes estatais e não estatais produzem terror e extermínio, e cuja própria natureza de ocultar corpos confunde os números registrados de execuções. Talvez seja mero acaso, mas os estados brasileiros com o maior crescimento no número de desaparições - Bahia, Sergipe e Amapá - registraram queda no número de mortes violentas intencionais.
Em São Paulo, estado que apresenta as menores taxas de homicídios por cem mil habitantes, a panaceia securitária leva o nome de Muralha Paulista (programa estadual) e Smart Sampa (programa municipal). Além da retórica da segurança como direito fundamental, do combate ao crime organizado e do domínio territorial das periferias e das chamadas zonas de vulnerabilidade, a aposta é nas tecnologias de monitoramento, que hoje estão acrescidas de softwares de reconhecimento facial, bancos de dados nacionais de atividade criminosa e tratamento por IA Generativa⁸. A utopia do controle total está assentada na capacidade técnica de produzir uma polícia preditiva que seja capaz, além de se antecipar ao futuro delito, produzir um futuro sem crime – o qual, obviamente, jamais chegará. Voltaremos a essa reflexão mais adiante neste boletim e em outros espaços do LASInTec; aqui e agora interessa concluir como essa “progressão de paz” se relaciona com os 10 anos da Chacina de Osasco e Barueri.
Há duas confluências entre os 10 anos da Chacina de Osasco e Barueri que saltam aos olhos: a sincronia com as disputas encarniçadas nas altas rodas do Brasil há pouco mais de uma década e a atual tendência estatística de queda no índice de homicídios, que sugere uma curva de paz por meio de programas institucionais de segurança pública. Por um lado, a primeira confluência mostra como as disputas das altas rodas se dão sobre um solo social de conflitos e se valem dele como impulsão de figuras públicas para estrelato institucional.
De outro lado, a convivência e a partilha dessa luta com as mães da Associação 13 de Agosto nos mostra que: 1. ainda que os índices de homicídio estejam em queda, quase 40 mil cadáveres por ano continuam a ser empilhados como números de guerra e basta uma morte do lado das forças de segurança para desencadear o funcionamento dos efeitos de governo, medo, vigilâncias e monitoramentos dentro e fora da legalidade – quando não um esforço para abarcar a realidade a posteriori na legalidade, borrando cada vez mais essas linhas; e 2. cada morte, como as 29 da chacina de Osasco e Barueri, ao serem registradas como dados estatísticos, rotinizam essa matança e a transformam em matéria a ser malhada por programas e políticas de segurança que fazem e refazem os planos de paz como pacificação – leia-se, o esmagamento de quem está embaixo do plano – e não campos de batalha pela memória daqueles que sofrem com a dupla violação do Estado, em vida e em luto.
Por fim, para além dos planos, programas e políticas de segurança, o que insiste e resiste à matança é a memória e a luta. É isso o que mais importa nesses dez anos, o que esse movimento personifica de uma luta que se faz pela memória e pela presença, expondo a materialidade refletida friamente nos dados.
¹ Ver Paulo Batistella. “O que foi a Chacina de Osasco e Barueri” In Ponte Jornalismo. São Paulo: Ponte, 12/08/2025.
² BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Voto nº 11594. Apelação nº 0022580-51.2015.8.26.0405. Relator: Otávio Rocha. p. 48. Disponível em: https://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2023/09/voto-victor-cristilder.pdf. Acesso em: 12 ago. 2025.
³ Ver “Prefeitura e PM inauguram nova sede da 3ª companhia do 14º BPMM”. Prefeitura de Osasco, 2023.
⁴ Ver “Atlas da Violência”. Ipea e FBSP, 2017.
⁵ Ver “Violência no Brasil em 2015 matou mais que ataques terroristas no mundo em 2017”. Agência , 2017.
⁶ Ibid.
⁷ Ver “Atlas da Violência”. Ipea e FBSP, 2024.