Boletim (Anti)Segurança #46
Boletim (Anti)Segurança #46
A produtividade dos massacres: tecnologias de monitoramento eletrônico e mais massacres em nome da segurança
Sociedades assombradas produzem políticas histéricas
de perseguição e aniquilamento.
(...)
Sociedades rigidamente hierarquizadas precisam
do cerimonial da morte como espetáculo de lei e ordem.
Vera Malaguti Batista,
“O medo na Cidade do Rio de Janeiro”, 2003
As políticas de Segurança Pública no estado de São Paulo possuem um marco: o Massacre do Carandiru¹, quando em 2 de outubro de 1992 a tropa de choque da Polícia Militar invadiu o Pavilhão 9 da Penitenciária do Estado a pretexto de controlar uma rebelião e executou, oficialmente, 111 presos, pessoas sob custódia do Estado. É a partir dele e/ou como resposta a ele que muito do que ocorre hoje sob a rubrica da Segurança Pública foi pensado e implementado, não apenas no estado do massacre, mas em todo país.
De um lado, diversos relatos e estudos apontam que a fundação do PCC (Primeiro Comando da Capital) foi motivada pelo massacre, quando presos da Casa de Custódia e Tratamento de Taubaté, conhecida como “O Piranhão”, frequentemente chamada pelos presos de “campo de concentração”, decidiu, em 1993, fundar uma organização de presos para resistir à opressão do sistema penitenciário e impedir que um novo Carandiru ocorresse.
De outro lado, as políticas policiais e penitenciárias passaram por uma série de reformas, mudanças em seus processos de formação e contratação de policiais, além de pesados investimentos para a expansão dos complexos prisionais do estado. Diversos planos de humanização e expansão dos meios de controle criminal passaram a ser executados, com pesado investimento estatal, que a cada ciclo eleitoral apresentavam uma nova solução ao chamado problema da criminalidade que, durante os anos 1990 e 2000, apresentava altos índices de letalidade geral nas periferias das cidades com taxas de homicídios comparáveis a zonas de guerra ou conflitos armados chamados de baixa intensidade. Essas taxas de homicídios por cem mil habitantes seguem altíssimas, mas apresentaram queda nacional nos últimos anos e em alguns estados, como São Paulo, tiveram quedas significativas.
Essas mudanças nos anos 1990, acompanhadas por planos nacionais de direitos humanos e de desenvolvimento cidadão, atingem um ápice por volta de 2005 e 2006, após a demolição do Carandiru em 2005, com um novo massacre, agora pelas ruas. Foram mais de 500 execuções em uma semana de Dia das Mães em maio de 2006. A seguir vieram uma nova lei de drogas (Lei 11.343/06) e a mudança do sistema socioeducativo paulista de FEBEM para Fundação Casa, culminando, no ano seguinte, no PRONASCI (Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania) instituído pela Lei 11.530, de 24 de outubro de 2007. O decreto presidencial nº 5.289, autorizando a criação da Força Nacional de Segurança, já estava em vigor desde 2004.
Em meio aos dois lados complementares das políticas segurança no século XXI, um grande mercado de Fundações, Institutos e grupos de pesquisa universitários se formaram em torno da questão criminal, da violência nas cidades e dos grupos criminais organizados denominados de facções e/ou comandos, que receberam uma lei só para eles em agosto de 2013: a Lei Federal nº 12.850/13. Desde então, a cada ciclo de violências expostas como espetáculo midiático, vemos serem discutidos projetos de leis, planos de ação governamental e operações policiais que repetem e se sucedem. Vemos também que agentes de segurança, policiais e gestores passam a integrar o rol de pesquisadores e experts no assunto. Um circuito que articula massacre, espetáculo, comoção e reformas, com planos, projetos de lei e linhas de financiamentos, passa a se repetir indefinidamente em torno das políticas de segurança e da distribuição racional tanto da violência quanto dos recursos políticos e econômicos.
No capitalismo, crime e criminalidade formam um negócio político e econômico que vai muito além do objeto direto de negociação. Muito mais gente que se imagina vive da chamada criminalidade organizada ou dos circuitos em seu entorno. Da mesma maneira que hoje o chamado crime organizado não lucra apenas com a venda de substâncias tornadas ilícitas como maconha e cocaína.
Passados mais de trinta anos do massacre do Carandiru, hoje mais de 900 mil pessoas se encontram sob sanção penal, cerca de 700 mil em celas físicas. Só no estado de São Paulo, são quase 200 mil presos. O número de pessoas em prisão domiciliar já passa dos 120 mil, com monitoramento eletrônico (tornozeleiras), e mais de 110 mil, sem monitoramento eletrônico, conforme levantamento do segundo semestre de 2024². Um exército de reserva de poder de quase um milhão de pessoas sob controle judiciário com as vidas sob a mira da polícia e do sistema carcerário, negociando suas sobrevivências. O estado de São Paulo registra a maior população carcerária da federação nacional e, não coincidentemente, abriga a principal e mais rentável organização criminosa do país, que comanda negócios transterritoriais que se diversificam para além do varejo de substâncias tornadas ilícitas pela legislação³.
Após a explosão do encarceramento nos anos 1990 e 2000, o número de pessoas presas segue com altas estáveis (crescimento de cerca de 5% nos últimos anos), mas chama a atenção o crescimento de apenados em prisão domiciliar e/ou com monitoramento eletrônico, controlados por tornozeleiras. Isso forma, oficialmente, uma massa apenada como exército de reserva de poder monitorado por aparelhos eletrônicos ou pela proximidade dos agentes de segurança legais ou ilegais. Soma-se a isso o fato de que quase 20% da população nacional vive muito próxima ou mesmo governada diretamente pelas chamadas facções criminosas que dominam territórios urbanos, segundo um levantamento do DataFolha, encomendado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública⁴. Cada vez mais a implosão do prédio no qual funcionava a Casa de Detenção do estado de São Paulo se mostra uma expansão de zonas policiais monitoradas, governadas por tecnologias de segurança legais e ilegais e seus novos dispositivos de governamentalidade violenta⁵.
Será que ainda tem gente chamando isso de Estado paralelo ou mercado ilegal? Pior que ainda tem. De qualquer maneira, os fluxos de dinheiro, armas, drogas, pessoas e sangue fluem livremente entre o legal e o ilegal, o estatal e o privado, o domínio territorial e o controle governamental, a depender dos acertos e desacertos do momento e dos interesses e negócios colocados à mesa por empresas, políticos e demais lideranças⁶.
Nesses mesmos trinta anos, o PCC passou de uma associação de presos que visava confrontar os “abusos” do sistema carcerário, sem questionar a continuidade das prisões e do sistema penal⁷, a um hub de variados negócios legais e ilegais que movimentou mais de 140 bilhões de reais só no ano de 2022, considerando apenas seus negócios diretos⁸. Uma imensa literatura sobre crime organizado, facções e milícias é produzida em escala industrial pelo jornalismo especializado, pelas Universidades e pelos Fóruns, Institutos e Fundações que se dedicam à violência, às políticas de segurança e às formas de organização das ações criminosas.
Categorias sociológicas são criadas para caracterizar essas formas de organização – empresa, irmandade, movimento – e, mais recentemente, ações policiais passaram mirar o que essa literatura já mostrara há anos: o PCC circula entre o legal e o ilegal, entre o oficial e extraoficial, entre nacional e o internacional. Além disso, participa da gestão estatal em vários níveis e, além de colaborar com a queda no número de homicídios no estado de São Paulo “pacificando as quebradas”, fomenta todo um modo de vida periférico nos bairros pobres de São Paulo, borrando e mesclando as fronteiras entre a vida nos bairros pobres e a vida nas cadeias. Também há indícios de que esse domínio vem mudando e sendo até mesmo questionado por uma nova geração envolvida com as atividades ilícitas.
Nesse imenso campo coberto pelo arco móvel do governo dos monitoramentos, o que raramente se questiona, pois é tomado como dado objetivo, é o sistema de justiça criminal que o produziu e se alimenta de sua continuidade gerenciável; de massacre em massacre, de plano em plano, de programa em programa, em meio à expansão da capacidade tecnológica dos monitoramentos eletrônicos, ampliando o dispositivo de monitoramento e, consequentemente, o governo das polícias nas democracias securitárias.
A prisão e a polícia, partícipes desse campo de governos e negócios, seguem inquestionáveis alvos de reformas e melhorias, salvo raríssimas exceções que as tomam como alvo de suas lutas por abolição.
metamorfoses do mesmo: a polícia do futuro e o futuro da polícia
Das iniciais resistências em nomear e reconhecer a existência do PCC, chamado pela mídia na época de “facção que atua dentro e fora dos presídios de São Paulo”, ao atual fascínio pela organização, muita coisa mudou, embaixo e em cima. Não cabe enumerá-las aqui, mas vamos olhar para a outra ponta dessa mesma fita: a polícia e as políticas de segurança contemporâneas com sua nova utopia preditiva e de visibilidade total, viabilizadas por tecnologias políticas e computacionais.
A iniciativa que estamos acompanhando mais de perto no LASInTec é o Programa Muralha Paulista⁹, do governo do estado de São Paulo e suas conexões com programas análogos no âmbito municipal, o Smart Sampa¹⁰, e no âmbito federal, a Plataforma de Monitoramento Córtex¹¹.
De cara, cumprindo ou não seus enunciados de controle total, programas como este abrem todo um campo novo de produção e negócios que giram em torno do futuro da polícia e da polícia do futuro. Objetivamente intensifica as formas de controle ambiental das ações classificadas como criminosas nas quais não há mais uma figura específica de sujeito perigoso a ser caçado, mas o monitoramento contínuo e ininterrupto dos fluxos no ambiente, que torna tudo e todos virtualmente suspeitos e, portanto, presas em potencial, mediadas por equipamentos não-orgânicos, os quais são capazes de capturar e neutralizar sem projetar vulnerabilidade nos caçadores, que matam sem se exporem à morte¹². Como tecnologia social, não é nada de muito novo, pois segue as formas da ecologia criminal, desenvolvida desde os anos 1970 pela sociologia criminal e pela criminologia da Escola de Chicago. Como tecnologia política, porém, introduz capacidades técnicas maiores de controle dos corpos e dos fluxos no ambiente, obviamente exercida com a devida seletividade inerente ao sistema de justiça criminal, seletividade cada vez mais entregue nas mãos do policial para exercer sua discricionariedade.
A ampliação do campo possível de intervenção técnica – possibilitada pelo desenvolvimento e barateamento das câmeras, pela capacidade de tratamento e processamento das imagens por meio de programações de IA generativa e pela ampliação dos meios para cálculos atuariais dos dados – intensificou as tecnologias políticas de controle característicos da racionalidade neoliberal, cuja consequência foi a ampliação das práticas policiais. Assim, da mesma maneira que não se trata mais de perseguir um sujeito perigoso específico, produzido pela máquina antropológica biopolítica, também não se trata mais da quantificação estatística dos corpos para gestão da população como corpo-espécie, mas de cálculo atuarial de riscos no ambiente para projetar futuro e, literalmente, produzi-lo. O there is no alternative (TINA), do início do neoliberalismo, se tornou um there is only one alternative: a única alternativa é a policial, em sua versão legal, legitimada e fardada, mas também em suas formas de conduta cidadã. O fim do futuro dos anos 1990 tornou-se , hoje, a produção de um único futuro projetado pelas políticas de segurança e gerido pelas polícias, agora com pretensões preditivas e capacidade técnica de controle total dos ambientes.
Essa ligação do Muralha Paulista com as tecnologias políticas características da racionalidade neoliberal e seus novos dispositivos de segurança é literal. Em sua página de apresentação, o objetivo do programa de controle de mobilidade criminal está assim sintetizado: “Com o intuito de ser a política pública de controle da mobilidade criminal do Estado, destina-se a elevar o custo do crime durante os deslocamentos dos criminosos no território paulista com o aumento da probabilidade de prisão”. Na sequência, citam um trecho do texto Gary Becker, Nobel de economia em 1992, publicado no Brasil no jornal paulista A Gazeta Mercantil, de 11 de janeiro de 1999¹³, sobre o papel que cumpre as punições mais duras e o aumento da capacidade de controle ambiental como redutores racionais (leia-se: por cálculo econômico de risco para realização da empreitada criminal) dos eventos classificados como crime e como essa forma de controle criminal não entra em conflito com a produção das liberdades civis, ou seja, produz uma certa liberdade edulcorada pelas garantias securitárias próprias de uma democracia moderna.
Além das intensificadas formas de controle e governo pelo dispositivo policial de segurança, amplificados pelas tecnologias computo-informacionais, essa nova forma da velha polícia abre um campo de negócios econômicos amplíssimo. Um negócio que não diferencia a política de Defesa da política de Segurança Pública, tampouco as gestões estatais ou privadas das capacidades de exercer a violência, seja ela letal ou chamada de menos letal, com equipamentos de contenção física como tasers e balas de borracha. Nesse mês de outubro, três dias antes do massacre no Rio, São Paulo abrigou uma feira de produtos de segurança, apresentando diversas possibilidades de abrir ainda mais esses negócios. Como relata a reportagem sobre o evento, “com três dias de duração, entre 23 a 25 de outubro [2025], o evento reuniu 18 mil pessoas, segundo a organização, e mais de 80 expositores nacionais e internacionais que vendem soluções tecnológicas às áreas de segurança pública e defesa.”¹⁴ Além do solucionismo tecnológico, que aponta sempre um artefato capaz de gerenciar todas as externalidades produzidas pelos usos da violência, a feira apresenta uma infinidade de produtores de alvos: de leitores e câmeras biométricas a fuzis produzidos com materiais mais leves e mais precisos, passando por carros blindados, equipamentos de contenção para uso civil e até mesmo drones e “cachorros-robôs” equipados com armamento ou bombas de gás. Tudo isso apresentado a um público composto por policiais, militares, políticos e empresários.
Como diz o ditado popular, dinheiro não aceita desaforo. Se essas tecnologias chegam com a promessa de maior controle e segurança para o Estado, a sociedade, as empresas, os condomínios etc., produzindo mais sensação de segurança nas pessoas, elas também trarão tudo isso para as atividades classificadas como criminosas das e entre as empresas que gerem os variados negócios ilegais. Recorrendo novamente à linguagem popular: o fuzil com traçante que canta lá, canta cá, e todo corpo sangra igual.
Não à toa, já se especula sobre novas formas de crime e novas formas de polícia, ambas, na verdade, não tão novas. O que se passa a sublinhar é uma curva de ascensão que toma o lugar de antigas ações como roubo a banco, sequestro e varejo de droga em lugares específicos das periferias: as famosas bocas, biqueiras ou lojinhas, como são chamadas hoje. Agora, os chamados novos crimes – golpes eletrônicos usando a chave Pix, sistemas de entrega de drogas mediados por apps de mensagens, furtos de celulares e de motos pelas ruas, negócios de bairro como lava jatos de veículos, revendas de carros usados, postos de gasolina e/ou adegas de bebidas e ativos no mercado financeiro como criptomoedas – são os campos de ação do chamado novo crime organizado. Mudanças sincronizadas com as novas formas do capitalismo e a cultura do novo capitalismo, para usar um termo cunhado pelo sociólogo Richard Sennett.
Um exemplo dessas mudanças pode ser observado na matéria de 04 de outubro de 2025, na qual o repórter Marcelo Godoy, especialista do jornal Estadão para questões de segurança, questiona: “a Segurança Pública está preparada para enfrentar um crime cada vez mais organizado e digital?”¹⁵. As respostas passam, fundamentalmente, pela criação de uma polícia preditiva equipada com câmeras corporais e capacidade técnica de regulação dos fluxos computo-informacionais e dos fluxos viários das cidades, por meio de tecnologias de satélites como GPS e de sistemas de leitura biométrica de rostos e placas de veículos, todos conectados aos bancos de dados policiais e do sistema de justiça criminal. Soluções que valorizam um policiamento inteligente, focado em monitoramentos e práticas investigativas, em acréscimo ao policiamento ostensivo. Isso daria às políticas de segurança a capacidade, inclusive, de redução da truculência e da letalidade dos agentes de segurança e dos burocratas armados. Na referida reportagem, tudo isso aparece como consenso entre delegados, policiais, militares, especialistas em segurança pública, organizações da sociedade civil e gestores estatais.
Não coincidentemente, um dos argumentos usados pelas polícias militar e civil do Rio de Janeiro para promover a carnificina de mais de cem corpos tombados nos Complexos do Alemão e da Penha no último dia 28 de outubro, foi de que os inimigos, os integrantes da facção a ser caçada, estavam usando drones para lançar bombas na cabeça dos policiais da nomeada Operação Contenção. Para além disso, os comentários mais ou menos inflamados, a favor ou contra a megaoperação policial, giram em torno da maior ou menor eficiência da Operação Contenção, da capacidade ou não do Estado lidar com um novo e expandido crime organizado, quais as formas possíveis de controlar as externalidades e efeitos colaterais de uma operação policial (leia-se: execução em massa de pessoas) e assim por diante.
Nesses discursos, comentários e análises, numa polissemia de especialistas, raramente se questiona a operação em si, os meios que a tornaram possível e as políticas de segurança que a sustentam e tendem a produzir uma nova operação em breve. Há um fatalismo programado diante das violências que atravessam as práticas de segurança em sentido amplo e suas formas policiais específicas. O massacre é só mais um episódio para novas-velhas soluções: leis mais duras, ampliação da capacidade de monitoramento e especialização técnica dos agentes de segurança e dos burocratas armados.
A produção de um lote de cadáveres é tratada como inevitável ou evitável em termos de quantidade e volume. Em nenhum momento se questiona o que produziu as condições de possibilidade para o massacre, mesmo estando evidente que as causas primeiras, necessárias e suficientes para a produção dessas mortes são as políticas de segurança, a forma securitária da democracia contemporânea e o sistema de justiça criminal moderno.
A positividade¹⁶ dos massacres e o futuro das chacinas
Como sempre expusemos aqui, a segurança, há muito tempo, colonizou a política. Mais do que indicar, com isso, um simples retorno a passados ditatoriais e/ou fascistas, essa colonização da segurança configura as gestões estatais contemporâneas como democracias securitárias, forma efetiva do Estado democrático de direito em consonância com a racionalidade neoliberal.
No entanto, nos últimos anos, estamos passando por uma intensificação dos aparatos tecnológico, jurídico e político voltados para o que se alega ser um combate ao crime organizado. Isso vai desde uma profusão de operações policiais, mais ou menos violentas, acompanhadas de suas devidas repercussões midiáticas, que projetam e ratificam discursos de policiais, delegados, agentes do Ministério Público e juízes da Suprema Corte; criação de programas estaduais de segurança pública, cada vez mais pautados na expansão dos corpos policiais (guarda civil metropolitana, polícia militar e polícia civil) e no emprego de tecnologias de monitoramento com capacidade de leitura biométrica e bancos de dados integrados¹⁷; e a proliferação de discursos dos poderes executivo e legislativo, sejam eles federais ou estaduais, sobre a necessidade de legislação que aumente e otimize a capacidade do Estado de combater o crime organizado.
Acrescenta-se a tudo isso um reconhecimento da chamada opinião pública de que há domínio efetivo de facções em bairros pobres, o que obviamente traz problemas e incide sobre a vida dos moradores¹⁸, feito por organizações fortemente armadas, que gerenciam negócios milionários e participam diretamente da chamada economia legal em todas as escalas, do comércio local ao mercado financeiro transterritorial.
Essa conjuntura cria condições para que a demanda por segurança seja cada vez maior e apresentada como urgente, necessária e incontornável. Essa demanda crescente faz com que as propostas e opiniões girem em torno, quase exclusivamente, da expansão dos dispositivos de segurança e a ampliação das competências das polícias e do poder judiciário. Nesse ponto entra o que chamamos de positividade dos massacres: a cada novo evento trágico, especialmente de morte coletiva como massacres e chacinas, uma série de proposições como projetos de lei e programas de segurança pública passam a encontrar condições favoráveis para avançar. Abre-se, assim, um novo ciclo de reformas penais, policiais e securitárias, que oferecem mudanças apenas para que tudo permaneça igual , ou para que se amplie ainda mais a capacidade de controle dos ambientes e dos fluxos que nele circulam.
Ainda sob o impacto do horror das imagens de corpos executados na mata e enfileirados no chão da favela pelos moradores do Alemão e da Penha, essa expansão é o que estamos assistindo nesse momento. A Operação Contenção, deflagrada em 28 de outubro de 2025, mal havia terminado e a algarvia opinativa das mídias somou-se ao senso de oportunidade de políticos e gestores públicos para fazer avançar planos de segurança e monitoramento como resposta mágica e, ao mesmo tempo, justificativa do massacre. Se elas terão o impacto das mudanças pós-massacre do Carandiru, não podemos saber de imediato, mas nos limites deste espaço, apontamos alguns exemplos de como um massacre é extremamente eficiente em criar condições para a expansão de políticas securitárias.
Em um primeiro momento, delineiam-se duas posições contrapostas. De um lado, há propostas e opiniões que defendem a necessidade de controle democrático da atividade policial, com o uso de agências policiais de inteligência capazes de executar operações como a Contenção sem a produção de tantos cadáveres e sob o devido controle das instâncias judiciais superiores; De outro, discursos inflamados exaltam o trabalho da polícia, comemoram as mortes no massacre ao passo em que esbravejam que as únicas mortes a serem lamentadas são as dos policiais, empenhando-se em desengavetar projetos de lei com novos tipos penais, que ampliam o efetivo policial e fortalecem sua capacidade de promover massacres. Isso tudo com amplo apoio popular que, em sua maioria, se não aprova explicitamente o massacre, o vê como necessário e/ou inevitável num contexto de domínio das organizações criminosas¹⁹.
Essas duas posições, embora apresentadas como antagônicas, são apenas a expressão da centralidade da segurança no jogo democrático e evidenciam que há uma disputa pelo controle efetivo do exercício da violência estatal. Elas convergem na medida que resultam em uma ampliação do dispositivo de segurança, seja em sua forma policial, seja como dispositivo de monitoramento amplificado por novas tecnologias. Partindo do exemplo acima sobre os efeitos do massacre do Carandiru, a resultante da disputa em torno do massacre do Alemão e da Penha será a ampliação das forças policiais, maior judicialização da vida (e da morte) com aumento de penas e diversificação de tipos penais e, o que talvez possa ser a sua marca específica a partir daqui: a efetiva operacionalização dos aparatos tecnológicos já em curso em programas de segurança como o Córtex, o Muralha Paulista e o Smart Sampa.
Peguemos, para concluir, exemplos significativos de como esse aparente antagonismo, que expressa a disputa pelo controle da segurança, terá como resultante a ampliação da democracia securitária que seguirá produzindo seus massacres.
Há 18 meses o Ministério da Justiça trabalha em um Projeto de Emenda Constitucional (PEC), chamado PEC da Segurança, que está sendo relatado na Câmara dos Deputados desde abril de 2025²⁰. Essa PEC, que propõe alterações nos artigos 21, 22, 23, 24 e 144 da Constituição de 1988, promete, pela integração nacional das ações policiais e das políticas de segurança, entregar maior eficiência no combate ao crime organizado. Ela se assenta num tripé legislativo que visa: 1) constitucionalização do SUSP (Sistema Único de Segurança Pública), criado durante o governo Michel Temer, pela Lei 13.675/2018, e no bojo da intervenção constitucional militarizada na pasta segurança pública do Rio de Janeiro - medida que facilitaria, dentre outras ações, a unificação nacional de bancos de dados policiais; 2) atualização das competências policiais na legislação, alterando o artigo 144 para permitir a criação de novas polícias - como o reconhecimento das atuais guardas metropolitanas como polícia ostensiva, a unificação das Polícias Rodoviárias Federais numa única polícia ostensiva de âmbito federal e ampliação das competências investigativas da Polícia Federal; 3) criação do Fundo Nacional de Segurança Pública e Política Penitenciária, o que, na prática, ampliaria os recursos destinados às políticas de segurança por meio da constitucionalização desses fundos, conferindo à área da segurança o mesmo status orçamentário federal das políticas de saúde e educação. Após o massacre da Penha e do Alemão, os mais de um ano e meio de tramitação sofreram uma aceleração e, ao que tudo indica, a PEC irá andar. Paralelo a isso, o governo federal enviou um projeto de lei nomeado de “AntiFacção”, que promete ampliar a pena para quem possuir ligação com organizações criminosas, e abrir brechas para o perigoso reconhecimento de tais organizações como grupos terroristas (para o qual existe PL específica tramitando no Congresso), algo parecido com o que foi feito em El Salvador, no governo Nayib Bukele, e que está sendo feito no Equador, de Daniel Noboa.
Somado a esse avanço nas pautas de segurança no âmbito federal, os governadores dos estados já anunciaram um “Consórcio da Paz”²¹, se solidarizando com o governo do Rio de Janeiro, aplaudindo a ação da polícia fluminense e oferecendo suas polícias (como se fossem tropas da República Velha) para ajudar no combate ao Comando Vermelho, se assim for necessário. Esses gestos, para além da disputa eleitoral em curso, mostram, mais uma vez, a positividade do massacre. Por um lado, leva mais água para o moinho da disputa pelo controle da segurança, fazendo com que nada além da expansão das polícias e do crescimento do sistema carcerário (competências dos governadores), sequer seja cogitado. Pelo outro, os programas em curso e as operações das polícias ganham um campo maior de legitimidade, assim como os planos de reformas e as judicializações em organizações internacionais, em geral pauta de Institutos, Fundações e grupos de direitos humanos²².
Por fim, em meio às disputas que fazem avançar as políticas de segurança, judicialização e a cidadania policial, todo um campo de saber policial se expande e ganha espaço. Os policiais, antes informantes dos estudos antropológicos e sociológicos sobre violência, agora figuram no mercado opinativo como especialistas em segurança pública e vão abandonando, gradualmente, o discurso linha dura em favor de uma fala articulada com referenciais do direito internacional e dos direitos humanos. Esse movimento ocorre no bojo das produções jurídicas não apenas da guerra às drogas e da guerra ao terror, mas também do enquadramento dos enfrentamentos entre polícia e crime organizado como conflitos de baixa intensidade, o que poderia inscrever as execuções policiais, como as mais de 120 do Massacre do Alemão e da Penha, na categoria de excludente de ilicitude para mortes decorrentes de conflito entre forças armadas inimigas.
A figura que sintetiza esse investimento discursivo é o ex-capitão do BOPE, Rodrigo Pimentel, formado pela UERJ e coautor, com Luiz Eduardo Soares, do livro “Elite da Tropa”, base para o famoso filme Tropa de Elite. Nas inúmeras entrevistas que concedeu comentando a Operação Contenção, justificando o massacre e usando fala mansa e pretensamente moderada para tratar as execuções como fatalidade, Pimentel insiste na caracterização dessas operações como CANI (Conflito Armado Não Internacional). Trata-se um protocolo das Convenções de Genebra que, a partir de 1977, estabelece que CANI, no direito internacional humanitário, substituiria expressões como conflito interno, guerra civil, rebelião, insurgência e insurreição, definições mais comuns nas leis da guerra clássica. Assim, atualiza o papel de contrainsurgência da polícia e responde às demandas de enquadramento dos massacres num léxico do direito humanitário internacional.
Esses breves exemplos, que serão desdobrados nas pesquisas do LASInTec e em nossos próximos boletins, são apenas uma indicação de como a distinção entre Defesa e Segurança Pública está definitivamente borrada e de como, nas democracias securitárias, a matança, as tecnologias de monitoramento e a retórica dos direitos humanos estão plenamente articuladas. Para além disso, evidencia que os massacres, como este na Penha e no Alemão, funcionam como trampolins para o avanço das políticas de segurança e judicialização, criando as condições para que outros sejam executados — e explica, em partes, porque o pior massacre será sempre o próximo. Diante disso, qualquer posição que não seja o fortalecimento das lutas anti-segurança e as recentes demandas de abolição da polícia, é contemporizar com o massacre cotidiano que, de tempos em tempos, mata por atacado.
¹ MARQUES, Adalton. Humanizar e expandir: uma genealogia da segurança pública em São Paulo. São Paulo: IBCCRIM, 2018.
² CNN Brasil. “Quase 1 milhão de pessoas cumpriam pena no Brasil em 2024”, 24 abr. 2025.
³ Para uma leitura abolicionista penal da relação entre o crescimento da população carcerária e o crescimento das denominadas facções e como os massacres detonam sempre novos planos governamentais e ciclos de reformas que preparam novos massacre, ainda dentro das prisões, ver Acácio Augusto. “Abolição penal”, PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 11, p. 64-73, nov. 2017.
⁴ Tulio Kruse. “Facções e milícias alcançam vizinhança de ao menos 28,5 milhões de brasileiros, aponta Datafolha ” In Folha de São Paulo, 16 out. 2025.
⁵ AUGUSTO, Acácio. Vigiar e punir, 50 anos: um livro eficaz como uma bomba e bonito como fogos de artifício. Boletim Lua Nova, 2025..
⁶ FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes, 2008. p. 457.
⁷ Sobre esse não questionamento, ainda nos seus anos de formação, ver Acácio Augusto. “da urgência em se abolir as punições: pcc, lutas contra as prisões e anarquia” In verve, 10: 262-276, 2006.
⁸ G1. “Crime organizado fatura R$ 146 bilhões em negócios legais no Brasil, diz Fórum de Segurança Pública”. In G1, 06 dez. 2024.
⁹ Ver Uma muralha invisível: controles a céu aberto, monitoramentos e polícia preditiva. Boletim (Anti)Segurança nº40. LASInTec, 08 nov. 2024.
¹⁰ Ver Cães de guarda: mais do mesmo da polícia e o acréscimo do policiamento hightech. Boletim (Anti)Segurança nº42. LASInTec, 27 mar. 2025.
¹¹ Ver Plataforma de Monitoramento Córtex — Ministério da Justiça e Segurança Pública.
¹² Sobre essas tecnologias de caça e as tecnologias computo-informacionais de neutralização, ver Grégoire Chamayou. Caças ao homem: história de filosofia do poder cinegético. Tradução de Marcela Vieira. São Paulo: crocodilo edições, 2025.
¹³ Ver programa muralha paulista: política pública de controle da mobilidade criminal. SSP-SP.
¹⁴ André Fleury Moraes. “Feira de segurança em SP traz detector de drones e 'SmartSampa' da PM”, Folha de S. Paulo, 26 out. 2025.
¹⁵ Marcelo Godoy. “A Segurança Pública está preparada para enfrentar um crime cada vez mais organizado e digital?”. Estadão, 02 out. 2025.
¹⁶ A positividade aqui se refere ao caráter produtivo das relações de poder, diferente de uma concepção repressiva e jurídico-política das definições clássicas do poder, derivada de uma leitura que Foucault definiu como Freud-marxista. Sobre isso ver Michel Foucault. História da sexualidade Vol. 1. A vontade de Saber. Rio de Janeiro, Graal, 2001.
¹⁷ Esses são dois dos inúmeros exemplos do papel que essas tecnologias ocupam nas políticas de segurança hoje: Matérias da Agência de Notícias do Governo do Estado de São Paulo sobre uso de drones e sobre a expansão do Muralha Paulista no interior do estado: “Entenda como os drones viraram peça fundamental nas ações de inteligência da polícia em SP” e “Campinas tem 24 municípios integrados ao Muralha Paulista e reforça combate à criminalidade”. Consultados em 02 nov. 2025.
¹⁸ Exemplo da conduta de moradores que, diante da profusão violenta, se resignam a rezar: Bruna Fantti e Aléxia Sousa. “'Eu passo rezando', diz morador da Vila Cruzeiro, alvo de operação da polícia do Rio”. Folha de S. Paulo, 28 out. 2025.
¹⁹ G1. “Datafolha: 57% dos moradores do Rio veem sucesso em megaoperação contra o CV”, 01 nov. 2025.
²⁰ Ver: Eduardo Gonçalves. “PEC da Segurança avança na Câmara e passa por mudanças após debate entre governo e Congresso; confira os principais pontos”. O Globo, 30 out. 2025.
²¹ Jan Niklas. “Governadores de direita criam 'Consórcio da Paz' e atacam Lula após operação letal no RJ”. Folha de S. Paulo, 30 out. 2025.
²² ONU. “Peritos da ONU pedem investigação sobre operação policial no Rio de Janeiro”. ONU News, 31 out. 2025.