Boletim (Anti)Segurança #45
Boletim (Anti)Segurança #45
Violência contra a Mulher: baixos sentimentos de vingança
“Matam-nas a cada passo, e vão entregar-se à polícia, certos de que defendem a honra sagrada, conspurcada (...)”
Maria Lacerda de Moura
Historicamente, das mulheres sempre foi exigida uma conduta moral balizada por um conjunto específico de valores e regras de ação intermediado pela família, educação, instituições religiosas etc. Esperava-se delas a personificação do zelo e do cuidado. Casada ou solteira, cabia à mulher manter-se abnegada e precavida, sem se corromper ou se desviar das normas sociais - em sua maioria impostas pelos homens -, deveriam preservar um comportamento casto e obediente. Regras de conduta que contavam, inclusive, com o reforço social das mulheres mais velhas.
A posse e a fidelidade do corpo da mulher se mantiveram, e ainda se mantêm, na subjetividade de muitos homens, que se veem como donos, proprietários legais ou ilegais, senhores absolutos de suas companheiras, esposas, namoradas, amantes, prostitutas de ocasião etc. Eles querem assegurar a exclusividade de seus corpos, sentimentos e atitudes; no entanto, se, por acaso, se sentirem traídos ou aviltados em seus direitos, podem se tornar violentos e assassinos. A justificativa para atos violentos, ou assassinatos contra mulheres, recebeu a insígnia de crimes de honra, uma forma de vingança pessoal retroalimentada pela vingança social. Ao se oporem à permanência num relacionamento infeliz (quando não abusivo ou violento), muitas são tratadas como inimigas, pagando pelos supostos desvios com a própria vida.
A publicização dos nomeados crimes de honra a todo momento foi utilizada pelos veículos de comunicação. Primeiro os jornais, depois o rádio e a televisão, em narrativas que – em maioria – questionavam a conduta moral das mulheres assassinadas, produzindo uma subjetividade que justificasse e as culpasse pelo seu próprio destino: a morte. Mas esse não foi o único efeito. Nas décadas de 1970 e 1980, movimentos de mulheres e movimentos feministas reivindicaram proteção e lutaram para interceptar o massacre de mulheres. Para elas, a falta de assistência e segurança tinha relação com o descaso da polícia, reclamavam de não conseguir registrar boletim de ocorrência, além de se sentirem menosprezadas com o atendimento policial.
Em São Paulo, as mudanças começaram a partir do governo Franco Montoro, ao instituir, em 1983, o Conselho Estadual da Condição Feminina, com a finalidade de institucionalizar a participação política do movimento feminista para discutir problemas específicos das mulheres, principalmente a violência doméstica. Ao longo de dois anos a articulação entre Secretaria de Segurança Pública e Conselho da Condição Feminina pensou em como intervir e controlar as sucessivas violências contra a mulher. Para tanto, uma medida foi a implementação de uma delegacia especializada na proteção e defesa da mulher, isto é, na prevenção e repressão à violência contra a mulher.
Políticas de segurança para a mulher: governo de condutas
Em 1985 foi implementada a primeira Delegacia da Mulher (DDM) do estado de São Paulo, no centro da cidade de São Paulo, na região da Sé. À época, a Secretaria de Segurança Pública e o Conselho da Condição Feminina investiram no discurso de que as mulheres, por natureza, entenderiam as angústias cotidianas umas das outras. Atualmente o estado de São Paulo conta com 141 DDMs e com a DDM Online¹.
A princípio, a DDM era constituída por uma equipe de mulheres: delegadas, investigadoras, escrivãs, psicólogas e assistentes sociais, para dar um atendimento diferenciado das chamadas delegacias comuns, tornou-se um símbolo de políticas públicas, precisamente por acatar as reivindicações dos movimentos feministas institucionalizados e partidários.
Os efeitos políticos da disseminação das DDMs foi rápido: não apenas em São Paulo, mas por todo o Brasil, surgiram Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAM) como são nomeadas em outros estados, tornando-se um acontecimento político que elegeu muitos governantes no executivo e no legislativo, garantiu alianças e longevidades partidárias, lançou ativistas, representantes e lideranças feministas, garantindo a visibilidade para as violências perpetradas contra as mulheres.
Entretanto, a década de 1990 foi marcada pelo descontentamento de feministas e delegadas, impulsionadas pelo discurso de tolerância zero, que reivindicavam punições mais severas e o encarceramento como forma de castigo e produção de estigma social. Se a violência doméstica e outros tipos de violências contra a mulher tinham acomodado as denúncias, a certeza da punição dos agressores não ocorria. Criticavam a lentidão da justiça criminal e o tratamento dado aos “delitos leves” (lesão corporal leve, maus-tratos, constrangimento ilegal, ameaças, calúnia e difamação) previstos na Lei 9.099/95². Pelas punições brandas, exigiam mais rigor do Estado.
Nos anos 2000 aconteceram reformas governamentais no âmbito de políticas públicas, programas e direitos destinados à proteção da mulher. Em 2003, o governo Lula concebeu a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM), e uma das primeiras medidas foi a elaboração do “Plano Nacional de Políticas para as Mulheres”, que balizou a “Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres” alinhada às recomendações e tratados internacionais na esfera da violência contra a mulher e dos direitos humanos. Um dos objetivos desta política foi o alinhamento à Lei 11.340, de 07 de agosto de 2006, conhecida como Lei Maria da Penha, para reprimir e prevenir práticas de violência doméstica e familiar contra a mulher.
Outro aspecto foi definir os eixos estruturantes de prevenção, assistência, combate e garantia de direitos para implementar a Rede de Atendimento à Mulher, articulando instituições e serviços governamentais, sociedade civil e comunidade, para garantir assistência qualificada. A Rede de Atendimento à Mulher contempla o Ligue 180 – Central de Atendimento à Mulher; Centros de Referência; Casas Abrigos; Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher; Defensorias da Mulher; Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; Ouvidorias; Centro de Referências da Assistência Social (CRAS) e Centros de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS); Serviço de Responsabilização e Educação do Agressor; Polícia Civil e Militar; Instituto Médico Legal; Serviços de Saúde voltados para o atendimento dos casos de violência sexual.
Contudo, a Lei Maria da Penha se sobressaiu, teve repercussão midiática, se disseminou na sociedade, produziu subjetividades, fazendo parte da vida cotidiana. Para muitas pessoas é considerada um marco histórico na proteção das mulheres, por incentivar a denúncia de violências contra a mulher, pelo endurecimento da penalização, pela ampliação das penas privativas de liberdade, por restringir o espaço de aplicação das penas alternativas, assim como impor a obrigatoriedade do agressor em participar efetivamente de programas de reeducação e recuperação. Para a Organização das Nações Unidas (ONU) esta lei é uma das mais avançadas do mundo.
No contexto dos homicídios de mulheres houve uma redefinição pela Lei 13.104/15 conhecida como Lei do Feminicídio, quando o assassinato é praticado em razão do gênero, menosprezo ou discriminação à condição feminina, em detrimento à violência doméstica e familiar, a pena prevista é de 12 a 30 anos, mas por ser identificado como “crime hediondo” o regime é mais rigoroso, obstruindo as progressões de penas conforme a legislação penal em vigor. Mais recentemente, seguindo os passos do punitivismo, a Lei 14.994/24 passou a tratar o feminicídio como “crime autônomo” e aumentou as penas: a pena mínima passou a ser de 20 anos e a pena máxima foi para 40 anos.
Já a Lei 14.541/23 determinou o “funcionamento ininterrupto”, ou seja, de 24 horas a todas as Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAM), incluindo feriados e fim de semanas, o atendimento humanizado deve ser realizado de preferência por policiais mulheres, além disso, em cidades que não tenham DEAM, as delegacias de polícia precisam ter uma sala reservada para atender mulheres violentadas. Ocorre que, mesmo no estado de São Paulo, onde o governo promove a campanha “São Paulo por Todas”, para divulgar suas políticas de segurança e cuidado para as mulheres, as DDMs abertas 24 horas estão distribuídas por regiões. Mas o que, de fato, é celebrado são os dados de 2024: 10,6 mil prisões de agressores e a instauração de mais de 98,9 mil inquéritos policiais³.
Não cessa
Mesmo com todo o aparato das tecnologias de governo, a amplificação de legislações específicas para assegurar os direitos das mulheres violentadas, punições mais severas para agressores, nada inibiu ou erradicou a violência contra a mulher, somente ampliou o controle do Estado.
Pesquisas atuais mostram um aumento da violência contra a mulher. Em relação a homicídios, de acordo com o Atlas da Violência 2025, organizado e publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, entre 2013 e 2023, 47.463 mil mulheres foram assassinadas no Brasil. “Somente em 2023, os registros apontam para 3.903 mulheres vítimas de homicídio, o que equivale a uma taxa de 3,5 mulheres por grupo de 100 mil habitantes do sexo feminino” (Atlas da Violência 2025, p. 49). São dados que podem ser comparados aos números de morte em regiões de guerra e/ou conflitos deflagrados.
Especificamente, a intersecção gênero e raça não deixa dúvida do massacre de mulheres negras. Entre 2013 e 2023, foram registradas 30.980 mulheres negras assassinadas, o que representa 67,1% do total de mulheres mortas. “No Brasil, em 2023, o risco de uma mulher negra ser assassinada foi 1,7 vezes maior do que o risco de uma mulher não negra. Isso significa que, para cada homicídio de uma mulher não negra, ocorreram, proporcionalmente, 70% mais homicídios de mulheres negras” (Idem, p. 62). Novamente, não seria exagero a analogia com uma situação de guerra, mais especificamente ao que se chama hoje de guerra irregular ou guerra assimétrica, situação na qual a capacidade de violência mortal de um grupo é infinitamente maior que a do outro, fazendo do que se chama por “guerra”, um massacre em meio à situação enfrentamento aberto.
O Relatório Anual Socioeconômico da Mulher de 2025 apresentou dados do Ministério da Saúde e do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), mostrando que em 2023, houve 302.856 registros de violência doméstica, sexual e outras formas de violências contra a mulher, um aumento expressivo em relação aos 216.024 casos de 2022.
O relatório aponta que o Brasil registrou em 2024, quase 196 estupros de mulheres por dia, totalizando 71.892 casos de estupros ao longo do ano. No entanto, há a preocupação com a “subnotificação”, porque muitos casos não são registrados. A hipótese é de que as mulheres escondem a própria situação por receio de serem estigmatizadas, ou pelo descaso de profissionais da saúde, que mesmo fazendo cursos de capacitação e formação sobre a temática, insistem no embuste da pauta de costumes que opera pela lógica moral da culpa.
O documento reitera a questão de gênero e raça apontada pelo Atlas da Violência 2025, ou seja: “dos registros de violência contra mulheres adultas (20 a 59 anos), 60,4% foram contra mulheres pretas e pardas, enquanto 37,5% contra mulheres brancas (RASEAM, 2025, p. 104). E mais uma vez escancara como o racismo de Estado está entranhado no que chamamos de sociedade, fomentando violências por meio de mecanismos de controle e seletividade que têm como alvo preferencial a população negra e periférica.
A violência contra a mulher não ocorre apenas no ambiente doméstico, onde supostamente poderiam se sentir seguras, isso todos sabem, mas em vários lugares e espaços. Diariamente noticia-se a violência nas ruas, no transporte coletivo, nas escolas, em igrejas, nos hospitais, no trabalho, e, inclusive, nas prisões.
O Brasil ostenta a terceira maior população carcerária do planeta, segundo informações do Ministério da Justiça e Segurança Pública e do Sistema Nacional de Informações Penais (SISDEPEN)⁴, até o segundo semestre de 2024, havia mais de 900 mil pessoas presas. Em celas físicas: 674.016; prisão domiciliar: 235.051, as que são monitoradas por tornozeleira eletrônica: 122.102. 94,13% são homens negros e 5,9% são mulheres.
No caso da população carcerária feminina, em 2024, havia 53.880 mulheres cumprindo alguma pena. Não por acaso, as mulheres negras são a maioria, constituem 65.9%, enquanto as mulheres brancas são 33%. A faixa etária predominante está entre 35 e 45 anos, seguida pela faixa de 25 a 29 anos. 180 mulheres gestantes e 98 lactantes; 120 filhos estão em estabelecimentos prisionais.
O encarceramento em massa mostra um aumento contínuo ano após ano, o discurso de cidadania, de garantias de direitos e melhorias nos presídios, ou mesmo de combate à tortura, não se sustenta. Planos, programas, relatórios servem para esquadrinhar a população carcerária e expandir os mecanismos de controle.
No caso das mulheres, a Secretaria Nacional de Políticas Penais (SENAPPEN) trabalha em conjunto com os estados na formulação e implantação dos “Planos Estaduais Atenção às Mulheres Privadas de Liberdade e Egressas do Sistema Prisional”⁵, previsto na “Política Nacional de Atenção às Mulheres em Situação de Privação de Liberdade e Egressas do Sistema Prisional”. Segundo a SENAPPEN, o intuito dos planos é dar visibilidade aos problemas, que perpassam as práticas do sistema prisional, os direitos das mulheres, e especificamente, a prevenção de quaisquer tipos de violências contra as mulheres presas.
O mesmo ocorre com o discurso benevolente contido na Lei n° 13.769/18, ao propor a substituição da prisão preventiva por prisão domiciliar para mães ou responsáveis por crianças de até 12 anos, de pessoas com deficiência, ou que estejam gestantes. Esta lei foi considerada por muitos setores como inovadora, por se pautar nas “Regras de Bangcok: regras das Nações Unidas para o tratamento de mulheres presas e medidas privativas de liberdade para mulheres infratoras”, um documento norteador que defende um tratamento humanizado, “digno, igualitário e diferenciado” às mulheres encarceradas, incentivando a aplicação de penas alternativas.
No início de 2025 foi lançado o “Pena Justa”, Plano Nacional para o Enfrentamento do Estado de Coisas Inconstitucional nas Prisões Brasileira”, exultado pelo Ministro Luís Roberto Barroso, como “uma decisão inovadora e de certa forma revolucionária”⁶, para enfrentar as mazelas e inconstitucionalidades próprias do sistema prisional que produzem violações de direitos, sejam as superlotações, problemas de infraestrutura, de alimentação, pessoas presas indevidamente ou mantidas encarceradas por período superior à sua condenação. Além disso, evoca a necessidade de interromper a reincidência, e, principalmente, promover a ressocialização por meio do trabalho e da educação, para que egressos não sejam um perigo para a sociedade. O plano contempla mais de 300 metas a serem atingidas até 2027, “um esforço do Estado”. Esta retórica é velha conhecida e está esgarçada. Reformar e aperfeiçoar faz parte das tecnologias de poder do Estado. O Estado que se diz protetor, é o mesmo que produz violências, que mata e castiga.
A violência contra a mulher faz parte dessa engrenagem ao investir em denúncia, castigo, vingança e punição. Somos condicionados(as) a uma cultura e linguagem punitiva que atravessa a vida cotidiana, produzindo e reproduzindo subjetividades, alimentando o sistema de punições e recompensas. Essa breve história da luta das mulheres no Brasil da chamada nova república contra a violência assimétrica que recai sobre seus corpos mostra que a sociedade não é capaz, ou não está interessada, em fazer cessar as violências. O que se vê é a sistematização e internacionalização dessa violência por meio de políticas de segurança e processos de judicialização da vida que reiteram os dispositivos de segurança de uma democracia securitária. Pois, a despeito dos protocolos internacionais de direitos humanos e das medidas governamentais de controle e punição, a violência contra mulheres não cessa. O sistema de justiça criminal e suas utopias de reforma e ressocialização, apenas fazem o que sempre fizeram: introduzem mais violência na equação, sob signo de ser uma violência legal e legítima, sem responder ao intolerável número crescente de mulheres violentadas.
É possível pensar como viver fora desse circuito?
¹ “Medidas protetivas de urgência solicitadas pelas DDM online crescem 23% no 1º trimestre.” Acesso em 15 set. 2025.
² “Lei 9.009, de 26 de setembro de 1995. Dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais e dá outras providências.” Acesso em 15 set. 2025.
³ “SP amplia Delegacias de Defesa da Mulher com atendimento 24 horas.” Acesso em 15 set. 2025.
⁴ Relatório de Informações Penais, 2° semestre 2024 (RELIPEN). Sistema Nacional de Informações Penais - 17° Ciclo SISDEPPEN, período de Julho a Dezembro de 2024. Acesso em 15 set. 2025.
⁵ “Portaria Interministerial n° 210, de 16 de Janeiro de 2014. Institui a Política Nacional de Atenção às Mulheres em Situação de Privação de Liberdade e Egressas do Sistema Prisional, e dá outras providências.”Acesso em 15 set. 2025.
⁶ “Lançamento do ‘Pena Justa’: Plano Nacional para o Enfrentamento do Estado de Coisas Inconstitucional nas Prisões Brasileiras”. Acesso em 15 set. 2025.