Boletim (Anti)Segurança #41
Cúpula do G20: controle logístico de fluxos, execuções policiais e a democracia securitária
“bota na conta do Papa”
O produto cultural símbolo dos gostos e usos securitários da democracia no Brasil é o filme Tropa de Elite. Nele, uma série de jargões e gírias característicos da simbiose entre meio delinquente e polícia ganhou o status de meme, antes mesmo da enorme popularização das redes sociais digitais, que viria na sequência. O filme é de 2007. As formas de nomear execuções, torturas e negócios duvidosos viraram figuras de linguagem na vida cotidiana popular: “traz o saco”, “fatia”, “senta o dedo”, “quem quer rir, tem que fazer rir”, “cada cachorro que lamba sua caceta”, dentre outras expressões temperadas pelo peculiar sarcasmo do carioca. Embora já fossem largamente usadas por muitas pessoas, especialmente policiais em todas suas formas, elas encontraram terreno fértil na sociabilidade autoritária e violenta do Brasil e o filme fez com que se espalhassem. Um ou outro meio da classe média letrada, que tem nojo de pobre, e que, tal como os pentecostais, pensa que gíria é coisa do demônio, pode ter torcido o nariz; mas é fato que o sucesso do filme, entre salas de cinema e DVDs piratas, ampliaram o repertório de falas fascistas que fazem a amarga tirania de nossas vidas cotidianas.
O filme se passa em 1997, quando o Bope, batalhão especial da polícia militar fluminense, está engajado na missão de pacificar a favela do morro do Turano, para garantir a segurança da terceira visita do Papa João Paulo II, entre os dias 2 e 6 de outubro daquele ano, por ocasião do Encontro Mundial com as Famílias. O sumo pontífice Karol Józef Wojtyła passaria uma noite próximo aos pobres do Turano e cabia ao Bope garantir a paz para que o líder máximo da burocracia católica pudesse anunciar que “a família é patrimônio da humanidade, porque é mediante a família que, conforme o desígnio de Deus, deve-se prolongar a presença do homem sobre a terra. Nas famílias cristãs, fundadas no sacramento do matrimônio, a fé nos vislumbra maravilhosamente o rosto de Cristo, esplendor da verdade, que enche de luz e de alegria os lares que inspiram a sua vida no Evangelho”¹. Pode até ser que essa fé da família fundada no matrimônio tenha enchido de luz e alegria alguns lares; mas os lares do morro do Turano o Bope encheu foi de bala mesmo. Isso serve de referência para mostrar aos atuais direitólogos, praticantes da direitologia que domina as “agendas de pesquisa” das ciências humanas hoje, que matar em nome de Deus e da Família não é algo recente na democracia brasileira. Mas este não é o assunto deste boletim.
O Rio de Janeiro já havia sido palco de uma operação especial de segurança para garantia de um megaevento internacional. Em 1992, a primeira operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) da democracia atual foi decretada pela presidência da república, convocando as Forças Armadas para cumprir funções de segurança pública e garantir a paz durante a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, a ECO-92. Um mega esquema de segurança com reconfiguração logística da cidade foi montado para garantir que os líderes mundiais e seus apaniguados discutissem como salvar o planeta, isto é, reconfigurar o capitalismo global. De lá para cá, são mais de três décadas que, a cada novo megaevento global, operações especiais de segurança fazem um upgrade da combinação entre sitiamento militar, excepcionalidade policial para prática de extermínio discriminado e tecnologia de monitoramento para garantir, aos olhos da governança global, a paz e a segurança. A lista é enorme: Jogos Pan-Americanos, Jornada Mundial da Juventude, Copa do Mundo FIFA, Olimpíadas Rio 2016, entre outros menores, alguns analisados em boletins anteriores que estão em nosso site.
Em Tropa de Elite há uma cena de execução sumária que também produziu uma dessas expressões que viriam a ser repetidas em situações diversas no cotidiano popular: “bota na conta do Papa”. Em meio a uma operação na favela, um grupo do Bope liderado pelo Capitão Nascimento, esse herói sem caráter do fascismo democrático brasileiro, recebe um chamado de urgência que os obriga a interromper uma sessão de tortura com um suposto traficante para irem para o morro do Babilônia. O subordinado do capitão pergunta o que fazer com a pessoa que eles estavam torturando por sufocamento com um saco plástico, ao que o capitão responde: “bota na conta do Papa”. O policial se agacha ao mesmo nível do torturado, para que a perícia não pudesse caracterizar, pelo ângulo do tiro, como execução, e “senta o dedo”.
Essa breve cena, de menos de trinta segundos, do filme de sucesso do cinema brasileiro, sintetiza a combinação das operações securitárias que garantem a realização de megaeventos: no lado visível, uma custosa operação de controle logístico com mobilização de tropas, bloqueio de ruas, fechamento de aeroportos, ativação equipamentos de monitoramento, treinamento de tropas por forças estrangeiras, dentre outras medidas; no lado menos visível, uma suspensão extra dos controles legais dos burocratas armados que podem, inclusive, aproveitar o momento para “resolver” questões pendentes ou “agilizar” o serviço, como executar alguém e colocar na conta da operação em curso, ou seja, colocar na conta do Papa.
a conta do G20
O mais recente desses megaeventos na cidade do Rio de Janeiro foi o encontro do G20 em sua 19ª edição. O encontro vinha da Índia, após ter passado pela Indonésia, Itália, Arábia Saudita e Japão. Diferente de Buenos Aires, em 2018, e Hamburgo, em 2017, cidades que foram palco de gigantes manifestações e duros enfrentamentos com as forças de segurança local, no Rio de Janeiro ele transcorreu sem um protesto de rua que seja. Tudo na mais perfeita paz e segurança democrática, temperado por eventos sociais e sustentáveis com protagonismo da primeira-dama brasileira.
Tudo aconteceu entre os dias 14 e 19 de novembro de 2024, na cidade do Rio de Janeiro. O palco da Cúpula do G20 foi o MAM (Museu de Arte Moderna), assim como outros eventos relacionados a ela, o G20 Social, o Festival Aliança Global e o Urban 20. Em resposta à magnitude do evento, que reúne os líderes dos 19 países e de dois blocos regionais, União Europeia e União Africana, que compõem o G20, foram mobilizadas de forma ostensiva as forças de segurança do país. Além da mobilização da Polícia Militar, Civil e Ambiental, o atual presidente decretou, a partir da prerrogativa da GLO, o emprego das Forças Armadas entre os dias 14 e 21 de novembro². Essa prerrogativa está prevista no decreto 3.897, de 2001, concedendo ao presidente o poder de acionar o exército para atuar como polícia em casos de esgotamento dos “instrumentos a isso previstos no art. 144 da Constituição”³, que regulamenta os agentes de segurança pública. O mesmo documento, no entanto, permite o acionamento da GLO de forma preventiva, com destaque para casos nos quais “se presuma ser possível a perturbação da ordem, tais como as relativas a eventos oficiais ou públicos, particularmente os que contem com a participação de Chefe de Estado, ou de Governo, estrangeiro”. Em outras palavras, não há muito o que limite a deliberação do presidente nesse quesito. Embora tenha tido pouca atenção, as GLOs seguem como um instrumento usado regularmente pelo executivo, alimentando as vaidades e o protagonismo político das Forças Armadas brasileiras.
Assim, as ruas do Rio de Janeiro comportaram em torno de 15,5 mil policiais militares, a cargo de patrulhar: 24 hotéis da zona sul e da Barra da Tijuca, nos quais se hospedaram os líderes estrangeiros; as linhas Vermelha e Amarela, vias expressas que conectam o aeroporto internacional ao centro da cidade; e as favelas próximas a essas regiões⁴. Além disso, também foram designados 1,2 mil policiais civis, responsáveis pelo G20 Social e pela Reunião da Cúpula⁵; e cerca de 7.500 militares para escoltar autoridades e realizar patrulhamentos terrestres, além de “ações de contraterrorismo, defesa antiaérea, proteção contra drones e defesa química, biológica, radiológica e nuclear”⁶. Soma-se a isso, ainda, a Marinha, que realizou o controle de acesso aos portos; e a Força Aérea, para controle dos terminais de embarque e desembarque aéreos⁷. Até as famosas trilhas da cidade, como a do Corcovado e da Pedra da Gávea, foram patrulhadas.
O aparato de segurança brasileiro também prometia um sistema de detecção e neutralização de drones, organizado pelo Gabinete de Segurança Institucional (GSI), comandado por militares⁸. Ele funciona a partir da recepção de sinais de radiofrequência e reconhecimento de imagens, seguidas do tratamento do material captado pelo Centro Integrado de Comando e Controle (CICC) e pelo Centro de Monitoramento Anti-drone federal. O CICC é um legado da Copa do Mundo FIFA de 2014 e das Olimpíadas Rio 2016 que seria entregue aos governadores dos estados e suas polícias, mas o custo de manutenção dos equipamentos resultou na rejeição da oferta pelos governos estaduais, e o aparato de monitoramento eletrônico segue sob comando dos militares, que operam sem muitos holofotes nos períodos em que não há megaeventos em curso. Mais do que um gigantesco Big Brother, trata-se de um coletor de dados monitorados que certamente alimentará, em breve, as IA generativas criadas para controle ambiental securitário, como previsto no programa da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, liderada por um policial militar, o Muralha Paulista.
Para os moradores da região na qual os eventos do G20 estavam concentrados, os efeitos foram sentidos em alguns trajetos cotidianos interrompidos, já que ficou interditada a circulação de pessoas e veículos não autorizados na avenida que liga o MAM aos bairros da zona sul⁹, além de serem fechadas para embarque e desembarque estações de metrô próximas ao evento, bem como paradas de ônibus, que foram desviadas. Até o aeroporto Santos Dumont foi considerado um risco por sua proximidade ao MAM e foi fechado entre os dias 18 e 19 de novembro. A linha vermelha, outra importante e movimentada via do cotidiano fluminense, também foi limitada e esteve fechada para a passagem das delegações¹⁰ nos dias de realização do G20. Essas interdições não ocorreram apenas nos dias de eventos, mas foram previamente implementadas para o treinamento dos agentes de segurança, que simularam desde ações de controle de protestos até resgate de reféns e operações de combate a ações terroristas¹¹.
Como se vê, a cada evento global, seja político, econômico ou esportivo, se ativa, atualiza e amplia os fluxos de controles logístico e ambiental da cidade com mobilização de agentes de segurança, treinamento de cenários de confronto e acionamento de aparato computo-informacional. O complemento para composição do dispositivo monitoramento pode ser notado nos eventos paralelos e sua retórica de salvação do planeta, que se expressa como religiosidade, laica e teológica, em fala de padres e pastores, lideranças sociais e ambientais, ONGs, Institutos, Fundações, artistas, influencers, celebridades e subcelebridades, e mais uma infinidade de figuras que arrotam uma retórica de combate às desigualdades, justiça social, desenvolvimento sustentável, responsabilidade social e ambiental que só se sustentam e se realizam pela adesão e aplausos de uma massa participativa e crente. No entanto, mesmo com tanta adesão e/ou passividade diante das 20 economias mais prósperas do planeta, o evento só ocorre com a mobilização gigantesca do enorme aparato securitário e de monitoramento descrito acima. E o circo dos donos do poder e seus capangas se repetiu, logo na sequência, na 29ª edição da Conferência da ONU sobre Clima, que começou dia 11 de novembro, em Baku, capital do Azerbaijão.
Mas há um resto que fica. Na parte menos visível deste aparato de segurança e monitoramento, quantas pessoas foram para a conta do G20? Pois essa democracia planetária e todo seu espetáculo de cidadania global. que se mostra social e ambientalmente sustentável, não funciona sem empilhar nos becos, favelas, cancelas e vielas corpos selecionados para o extermínio de uma democracia securitária.
¹ Discurso do Papa João Paulo II no Encontro com as Famílias de todo o mundo, em 4 de outubro de 1997, no Rio de Janeiro.
² EIRAS, Yuri. PM do Rio planeja policiamento em porta de hotéis, vias expressas e trilhas durante G20. Folha, São Paulo, 11 de novembro de 2024.
³ BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.
⁴ CORRÊA, Douglas. G20: 25 mil agentes participam de esquema especial de segurança. Agência Brasil, Rio de Janeiro, 14 de novembro de 2024.
⁵ Ibidem.
⁶ O GLOBO. G20 no Rio: veja o que muda nos transportes e como se deslocar pela cidade durante o evento. Rio de Janeiro, 14 de novembro de 2024.
⁷ EIRAS, Yuri. PM do Rio planeja policiamento em porta de hotéis, vias expressas e trilhas durante G20. Folha, São Paulo, 11 de novembro de 2024.
⁸ CORRÊA, Douglas. G20: 25 mil agentes participam de esquema especial de segurança. Agência Brasil, Rio de Janeiro, 14 de novembro de 2024.
⁹ EIRAS, Op. cit.
¹⁰ O GLOBO. G20 no Rio: veja o que muda nos transportes e como se deslocar pela cidade durante o evento. O GLOBO, Rio de Janeiro, 14 de novembro de 2024.
¹¹ EIRAS, Op. cit..
Referências Bibliográficas
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.
CORRÊA, Douglas. G20: 25 mil agentes participam de esquema especial de segurança | Agência Brasil. Agência Brasil, Rio de Janeiro, 14 de novembro de 2024.
EIRAS, Yuri. PMs farão segurança em trilhas e hotéis da orla para o G20. Folha, São Paulo, 11 de novembro de 2024.
OGLOBO. G20 no Rio: veja o que muda nos transportes e como se deslocar pela cidade durante o evento. O GLOBO, Rio de Janeiro, 14 de novembro de 2024.