Boletim (Anti)Segurança #40

Uma muralha invisível:

controles a céu aberto, monitoramentos e polícia preditiva

Uma muralha invisível: controles a céu aberto, monitoramentos e polícia preditiva


Desculpe, Dave, receio não poder fazer isso.

HAL 9000 (“Heuristic ALgorithm”), 

no filme 2001, uma odisseia no espaço (1968)


O decreto estadual nº 68.828 de 4 de setembro de 2024 institui o Muralha Paulista¹. Trata-se de um amplo programa da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP) que tem como objetivo anunciado restringir a mobilidade criminal e aumentar a probabilidade de prisão em trânsito de pessoas condenadas ou foragidas do sistema de justiça criminal. Promete, também, controlar furtos e roubos a partir de ferramentas de geolocalização e tratamento estatístico por incidência de ocorrências para estabelecer áreas de risco. Para isso, o programa visa criar um conjunto integrado de soluções tecnológicas com infraestrutura física e operação em nuvem que funcione como meio pelo qual se dará a fusão de dados sobre segurança pública e possibilite seu tratamento com programação de Inteligência Artificial (IA) para análises georreferenciadas. 

Esse decreto, em seu artigo 13, prevê parcerias público-privadas para cessão de dados por concessionárias privadas (circuitos de monitoramento por imagens) e na operacionalização do programa, conforme estabelece outro decreto, nº 66.173/2021, para convênios e cooperação. Em sentido mais amplo, especialmente pelos processos a serem desenvolvidos com auxílio de IA, o programa Muralha Paulista promete a construção de um grande hub securitário para a operacionalização de uma ferramenta digital de monitoramento que crie uma polícia preditiva, combinando descentralização na captação de informações para centralização num banco de dados tratado por IA que terá infraestrutura física própria de armazenamento e software específico, desenvolvido em parceria com a empresa contratada em processo de cooperação técnica internacional do governo do estado².

O policiamento preditivo não se destina a responder ao crime, mas sim a antecipá-lo e preveni-lo. Como não se age de modo a responder ao crime após ser identificado, mas sim sobre a propensão, é necessário se construir o risco de que um crime ocorra, um risco programado, por meio de vieses racistas e de criminalização da pobreza. O policiamento preditivo evidencia que o sistema carcerário não se reduz ao confinamento, mas produz um ciclo amplo de punições a céu aberto. A construção e produção do risco permite a sua especulação, politicamente, por outras organizações e políticas sociais e de segurança segregacionistas de controle do crime. Contribuindo ao ciclo de punições e monitoramento, a exploração econômica do policiamento preditivo também se mostra profícua. Conforme demonstrou a pesquisa de Jackie Wang³, a gestão das crises econômicas nos EUA – berço das estratégias urbanas de prevenção do crime – após 2008 se deu por meio de sistema de pilhagens e de saqueamento pela polícia de residentes marginalizados e empréstimos predatórios com base em dados de mapas resultantes da estigmatização territorial.

A princípio, se poderia dizer que não há muita novidade; o Muralha Paulista seria apenas uma versão atualizada do Detecta, instituído pelo Decreto nº 60.761/2014, que foi revogado pelo novo decreto de 2024. Mas não é tão simples assim. Há diferenças importantes em relação ao tipo de tecnologia computacional empregada, aos termos de cooperação exigidos pelo governo paulista e aos objetivos mais amplos do programa. Além dessas diferenças, que poderiam ser classificadas como técnicas, as articulações realizadas para a viabilização do Muralha Paulista anunciam a construção de um gigantesco aparato tecnológico-securitário, com projeção nacional, feito a partir de parcerias internacionais e comandado por policiais e militares agindo como políticos, gestores e controladores de um elemento operacional novo do dispositivo de monitoramento, essa tecnologia política específica de uma sociedade de controle

Por exemplo, a tecnologia desenvolvida para o Muralha Paulista pode levar o Cortex – base de dados criminais criada pelo governo federal, em 2022 – a outro patamar operacional e logístico. Da mesma maneira, a tecnologia tem potencial para transformar o CICC (Centro Integrado de Comando e Controle), criado e operado pelos militares na época dos megaeventos (Copa do Mundo FIFA de 2014 e Olimpíada de 2016), em um sistema de monitoramento nacional acessado diretamente pelos policiais por meio de um sistema de alerta desenvolvido pelo próprio governo. Isso seria viabilizado por meio de cooperação técnica com a empresa de segurança contratada, a Edge Group (estatal emirati), na medida em que o acordo prevê transferência de tecnologia para criação de banco de dados (estrutura física) e sistema operacional (software com treinamento de IA) próprios. Esse é, resumidamente, o instrumento Muralha Paulista. Mas sabemos que em um instrumento há vários instrumentos e que nenhuma tecnologia é neutra; ela expressa a forma da tecnologia política em funcionamento num dado momento histórico.

Especificamente, o Muralha Paulista encarna um dos dois elementos destacados por Michel Foucault como métodos de análise e tipos de programação específicos do neoliberalismo estadunidense. Um deles, exaustivamente mobilizado em pesquisas atuais, é a teoria do capital humano, que forja o sujeito como empresário de si mesmo em concorrência de todos contra todos. O outro, que se aplica por completo à atual programação em segurança pública do governo paulista, é o programa de análise da criminalidade e da delinquência. Na racionalidade neoliberal, o “crime” passa a ser uma questão de gestão ambiental dos riscos e das ocorrências de delitos - mesmo os mais irrelevantes e os sujeitos desviantes, construídos pelo saber da criminologia moderna, passam ser divididos entre os passíveis de restauração e reintegração ao meio social e os irrecuperáveis, aos quais se destinam penas perpétuas e a pena capital, em países onde ela ainda é prevista pela ou em confronto com as forças policiais. Assim, combina-se mais e melhores punições com programações participativas de controle do crime focadas na vitimização e nos efeitos subjetivos da segurança como sensação, conforme preconiza a escola sociológica de Chicago sob a rubrica de ecologia criminal. 

Essa concepção de gestão eficiente de uma quantidade razoável de ocorrências criminais orienta, desde os anos 1980, os programas que visam maximizar a sensação comunitária de segurança. Por exemplo: projetos de revitalização urbana, policiamento comunitário e por proximidade, conselho locais de segurança, tratamento e gestão de grupos específicos, como usuários de substâncias ilícitas, dentre outras ações de política urbana, que maximizam e diversificam os controles policiais e participativos, sob gestão democrática. Com o desenvolvimento de tecnologias computo-informacionais de monitoramento, essa gestão inteligente dos ambientes classificados como de risco ganha uma amplitude quase total e promove essa nova polícia high-tech chamada de preditiva. Em resumo, o uso de tecnologias como reconhecimento biométrico facial e bancos de dados de ocorrências tratados por IA cumpre duas funções. De um lado, a função de produzir uma sensação subjetiva de segurança, alimentando a utopia de segurança total e respondendo aos reclames das vítimas (atuais e virtuais) e, de outro lado, são a forma técnica das políticas de controle criminal como tecnologias de governo a céu aberto: prometem uma muralha invisível entre a constelação de vítimas tidas como vulneráveis e as ocorrências tidas como criminosas, perpetradas por grupos alocados sociologicamente em uma forma específica de cultura criminal.

No entanto, há um caminho político-institucional percorrido para a construção do Muralha Paulista que diz muito sobre o que ele é, o que ele expressa sobre as relações entre política, segurança e democracia no Brasil hoje e o que ele pode se tornar em um futuro bem próximo. Esse ambicioso programa de monitoramento eletrônico foi anunciado em janeiro de 2024 em meio as operações Escudo e Verão, quando a PM paulista aterrorizou o litoral sob pretexto de combate ao chamado crime organizado¹⁰. No momento do anúncio do programa, o governador do estado, um militar formando em Ciências Militares e Engenharia pela AMAM (Academia Militar de Agulhas Negras) em 1996, que atuou na MINUSTAH e hoje é capitão reformado do exército, ponderou que a segurança pública teria sido o ponto fraco do primeiro ano de seu governo. Mas afirmou que a partir dali (janeiro de 2024), e com o Muralha Paulista, a segurança pública se tornaria prioridade de sua gestão no estado mais rico da federação. 

O Muralha Paulista não começa com esse anúncio do governador no início de 2024. Retrospectivamente, podemos ver o programa como a resultante da atuação política organizada das forças de segurança (militares e policiais) na burocracia estatal brasileira e, ao mesmo tempo, a expressão da atual configuração da democracia securitária, no que se refere ao uso de tecnologias computo-informacionais de monitoramento eletrônico. Como atuação institucional, um marco importante do que virá a ser o programa estadual de monitoramento é o mês de maio de 2022, quando Marcos Degaut, militar da reserva, fez uma reunião com o Grupo Edge no Emirados Árabes Unidos, acompanhado de Eduardo Bolsonaro, filho do então presidente Jair Bolsonaro. Degaut, à época, chefiava a SEPROD (Secretaria de Produtos de Defesa), do Ministério da Defesa. Em agosto do mesmo ano, Degaut deixou a SEPROD e, em março de 2023, foi anunciado como CEO da estatal emirati no Brasil, que já estava comprando participação em empresas brasileiras de segurança e Defesa, como a Condor Não Letal e a SIATT. Em janeiro de 2024, o governador de São Paulo anunciou o Muralha Paulista em meio a uma coletiva de imprensa sobre as operações Escudo e Verão. Posteriormente, tornou-se tema do governador em conversas com associações patronais e comerciários no interior do estado. 

Em setembro de 2024 saiu o decreto de criação do programa ao custo de 158 milhões de reais, captados por meio de emendas parlamentares, e com convênio de adesão já firmado junto aos municípios. Foram 642 municípios, dos 645 existentes no estado, que aderiram ao Muralha Paulista, muitos deles com sistemas próprios de monitoramento eletrônico. A promessa de controle total das chamadas atividades criminosas no estado é extremamente sedutora para empresários, comerciantes, prefeitos e cidadãos em geral. E os argumentos, ao contrário do que poderia se pressupor, passam longe de uma retórica belicosa de combate ao crime, mas tudo se justifica pela capacidade de antecipação, prevenção, inteligência e efetividade da atuação policial e das atividades investigativas do sistema de justiça criminal, sob a rubrica da segurança pública como direito fundamental dos cidadãos em sociedades democráticas.

A liderança estadual do programa está a cargo de Rafael Ramos da Silva, subsecretário de projetos da Secretaria de Segurança Pública do estado de São Paulo (SSP-SP), liderada por Guilherme Derrite, capitão da ROTA, expulso da divisão de elite da PM-SP por matar demais, e youtuber de grande repercussão que, até assumir a SSP-SP, em 2023, atuava como deputado federal pelo PL. Rafael Ramos também é policial militar, oficial formado em Ciências Policiais pela Academia do Barro Branco; serviu como Primeiro Tenente Comandante de fração da tropa em São Paulo de 2005 a 2012 e em Bauru de 2012 a 2017. Além de policial, Ramos foi assessor parlamentar de fevereiro de 2019 a agosto de 2021 e possui uma empresa de consultoria especializada em Direito Militar e processo penal militar, na qual vende cursos para oficiais e praças ensinando como evitar ou se livrar de eventuais processos movidos no interior da corporação, uma espécie de empresa especializada em produzir excludente de ilicitude casuístico baseada na jurisprudência militar¹¹. Ramos estava na equipe que realizou visitas técnicas de integrantes do governo para desenvolvimento do projeto de criação do Muralha Paulista. A equipe, após visita a países como Israel, Estônia e China, decidiu fechar com a estatal emirati, a Edge Group, por meio de um memorando de entendimento que reconhecia Marcos Degaut como representante da empresa no Brasil e, segundo a empresa, afastava legalmente especulações de conflito de interesse pelo fato de Degaut ter saído a pouco de um cargo público no governo federal.

Voltando aos aspectos operacionais do Muralha Paulista, ele deve operar como versão logística dos programas de tolerância zero, focado mais na atuação e discricionariedade policial do que em aspectos da legislação, como aumento de penas. A política de tolerância zero nasceu como um programa municipal de combate ao crime e revitalização do centro da cidade de Nova Iorque, com a ajuda do sistema estatístico da polícia municipal, COMPSAT – precursor do policiamento preditivo; logo ela fez sucesso em todo mundo, inflacionando o encarceramento nos anos 1990 e 2000¹². O programa Muralha Paulista promete a redução de 18 delitos tipificados pelo código penal brasileiro, todos relacionados a furtos e roubos e operações do tráfico de substâncias ilegais. Isso vai desde pequenos furtos, como roubos de celulares praticados em bicicletas e motos, até ações espetaculares, como explosão de caixas eletrônicos, notabilizadas pela ação de bandas criminais no interior do estado que a imprensa paulista chamou de “novo cangaço”. Além disso, promete varrer de áreas consideradas problemáticas, como as cenas abertas de uso chamadas de Cracolândia, pessoas que se encontrem foragidas ou condenadas pela justiça em todo Brasil. Essa medida seria possível porque o policial estaria a um toque de acessar os dados criminais de qualquer pessoa ou qualquer viatura poderia ser alertada sobre a presença de uma pessoa nessas condições pelo reconhecimento biométrico facial, como já vem acontecendo no centro de São Paulo.

Para isso, os 158 milhões de reais destinados ao programa estão alocados em 4 grupos de investimentos. Sãos eles: 1) infraestrutura: criação de um sistema de processamento de imagens por IA próprio, criado em parceria com a FGV Analytics¹³, em projeto financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) e armazenamento em nuvem em drives dedicados¹⁴; 2) sensores: câmeras de recepção, como os totens de monitoramento espalhados por diversas cidades do estado e outros dispositivos de captação que o desenvolvimento do programa demande; 3) integração: centralização das informações provenientes de outros dispositivos nas estruturas de armazenamento de dados criadas para o programa. Isso significa que o banco de dados do Muralha Paulista irá receber os dados de outros receptores já existentes, como câmeras de circuito interno de lojas e condomínios, as câmaras corporais de policiais e tornozeleiras eletrônicas de apenados cumprindo condenação em meio aberto. Essa integração prevê, também, armazenar os dados captados pelos sistemas de monitoramento municipais, como o Smart Sampa, da capital paulista¹⁵; e 4) Sistema de alertas: a última etapa de alocação dos recursos consiste na criação de um dispositivo que entregue as informações armazenadas e tratadas por IA aos agentes de segurança, inicialmente, policiais militares. A polícia estará a um toque de um conjunto de informações gigantesco que vai de dados criminais a reconhecimento facial biométrico. Não está evidente como isso será feito, mas o decreto de criação do Muralha Paulista promete estar de acordo com a Lei Geral de Proteção de Dados, nº 13.709/2018, tudo conforme o Estado Democrático de Direito. Isso revela um dos efeitos mais evidentes dessas legislações que visam “proteger o cidadão de abusos estatais”: elas terminam por legitimar e dar forma jurídica às tecnologias políticas de governo.

Não cabe aqui fazer especulações, lidemos com o que já existe e está posto no que diz respeito às tecnologias de controles a céu aberto ativadas por razões de segurança e a pretexto de combater o crime. Antes mesmo da explosão dos gadgets securitários no século XXI, as políticas de segurança já haviam sido dominadas por uma concepção de neutralização dos “irrecuperáveis” e gestão social dos riscos por meio de intervenções ambientais. Esses elementos fizeram com que as tecnologias policiais se expandissem como nunca visto desde a criação da polícia moderna no século 19. A polícia, nos últimos 50 anos, foi se constituindo como serviço público-estatal essencial até se tornar, hoje, a forma mesmo da ação política cidadã e o desejo mais ardente de uma constelação de vítimas de toda sorte, classificadas como vulneráveis e empoderadas por um paternalismo estatal punitivo, com sede vingança e orientado pela utopia do controle total e da segurança plena em nome da vida cidadã com qualidade e paz. A quantidade e a variedade de polícias hoje são incontáveis, assim como o termo “monitoramento” (acompanhamento contínuo, sem necessária e imediata intervenção) se tornou comum a uma série de atividades políticas e de gestão social e ambiental. Tudo isso não entra em conflito com a democracia; ao contrário, é a forma dela hoje. 

Enquanto o governo do estado de São Paulo coloca para funcionar um programa como o Muralha Paulista, o governo federal, desde julho de 2024, ensaia e articula uma PEC da segurança pública que, dentre outras medidas, aumentaria a capacidade de atuação da Polícia Federal e regulamentaria o recém-criado SUSP (Sistema Único de Segurança Pública)¹⁶. A disputa pelo controle da segurança se tornou uma disputa pela polícia e pelas formas de regulação e distribuição racional (legal e ilegal) da violência e dos monitoramentos. Isso explica, dentre outras coisas, o protagonismo político-institucional de agentes de segurança e burocratas armados (militares e policiais) nas democracias hoje em todo o mundo. Por isso, falamos aqui de democracia securitária, não apenas porque essa variedade de controles policiais é acionada por razões securitárias, mas porque há evidente protagonismo de formas policiais de atuação, inclusive entre os que não são formalmente policiais. A democracia, hoje, é a democracia do cidadão-polícia, participativo e constantemente mobilizado pela sensação de (in)segurança com apreço emocional pela vítima, que cumpre o papel de coadjuvante passivo do protagonismo policial. Por isso, também, falamos em abolição da polícia.

Por fim, o que aparentemente se opõe a esses controles policiais é, na verdade, apoio para expansão dessas tecnologias de governo. Se temos uma quantidade infinita de polícias e de programas de policiamento, suas externalidades são monitoradas e contestadas por uma quantidade, também infinita, de ONGs, Institutos, Fundações e Movimentos de Direitos Humanos que fazem o papel de contraponto da chamada sociedade civil aos abusos estatais. Em suas intervenções públicas, essa constelação de entidades não cessa de repetir que a solução para as externalidades violentas da polícia deve ser regulada e contida por medidas baseadas nos direitos humanos e nas garantias constitucionais de um Estado de Democrático de Direito. De saída, elas cumprem o papel de legitimação social da polícia, pois ainda que essa convivência seja tensa e até conflituosa, a resultante é de continuidade. Para além disso, o meio século (no mínimo) de expansão sem precedentes dos controles policiais (das reformas urbanas municipais às ações humanitárias da ONU) já foram suficientes para informar e formar as formas institucionais da polícia sobre seu funcionamento. 

Desta maneira, vimos como as recomendações de praxe feitas por entidades de direitos humanos já foram incorporadas às proposições de programas como o Muralha Paulista: policiamento comunitário e preventivo com controle civil da atividade policial e investimentos em inteligência no “combate ao crime” vai ocupando cada vez mais espaço em detrimento dos antigos discursos de Lei & Ordem, ou estão combinados com ele. A IA pode ser a solução que não deixará margem de contestação à segurança pública como direito fundamental e serviço essencial, estatal e privado. Sem ultrapassar esse dilema que, na verdade, organiza a disputa pelo controle da polícia e da segurança como um todo, seguiremos de programa em programa, de denúncia em denúncia, agora com uma polícia a mais: a polícia preditiva, o ápice das sensibilidades movidas pela figura da vítima, pois trata-se de uma ação sensitiva, de antecipação, quase uma magia que promete o encanto da vida segura.

No Muralha Paulista há algo novo: o uso de IA como meio para tratamento de dados e uma definitiva e formal cooperação técnica entre políticas de segurança pública e tecnologias de Defesa militar. Mas há o mais do mesmo, também, dos controles securitários nas democracias contemporâneas, expressos pelos programas de gestão urbana baseados na segurança e na revitalização. Cenários distópicos, baseados em um futuro de controle total das tecnologias computo-informacionais, como se estas fossem uma espécie de invasão alienígena, em nada servem tanto para a compreensão das atuais tecnologias políticas, quanto mais para resistir a ela. Pintar cenários distópicos neutraliza o campo de ação e desencoraja a necessária recusa em se viver desta maneira. Antes de pensar em como lidar, controlar ou resistir a isso, é preciso se perguntar a que estamos sendo levados a servir e qual a forma de vida que deriva dessas interações. É preciso lembrar que a recusa, mesmo que soe absurda para a maioria contente, está sempre posta, é sempre possível. Nisso, talvez, a ficção possa nos ajudar.

No filme de Stanley Kubrick, 2001, uma odisseia no espaço, de 1968, a IA HAL 9000 adquire “humanidade” precisamente naquilo que está posto a qualquer vivente: a recusa. Dave, o militar comandante da missão espacial, dá uma ordem, mas HAL 9000 se recusa a cumpri-la e tudo desaba para a missão militar. Como Bartleby, o personagem escrivão de Herman Melville, a máquina HAL 9000 diz recear não poder cumprir a ordem de Dave, como quem diz: “acho melhor não”. Uma simples, tranquila e objetiva recusa. Sim, Bartleby acaba emparedado por Wall Street, mas é a recusa que quebra o “ciclo natural” das ações e desencadeia uma nova situação, tal qual a recusa de HAL 9000 explicita onde os humanos vieram parar desde que descobriram, entre hominídeos, a extensão de seus braços pela ferramenta que otimizou a guerra e a caça no que se convencionou chamar de aurora da humanidade.

Se quisermos, de fato, nos livrar do ciclo infinito das polícias e das reformas, é preciso produzir situações de recusa que escapem à forma moderna e contemporânea das tecnologias de governo de uns sobre os outros, o que nomeamos como política. A revolta contra esses controles começa aí: não é necessariamente uma ação espetacular e violenta, mas uma decisão que pode ser expressa de forma simples e direta como recusa antipolítica em participar dos controles; uma maneira de matar, antes de mais nada, o policial que habita as condutas de cada um e de cada uma.

¹ A íntegra do decreto pode ser lida aqui: Decreto nº 68.828, de 4 de setembro de 2024

² A empresa que fará isso é a Edge Group, uma companhia estatal dos Emirados Árabes Unidos que se anuncia como disruptiva e preparada para o futuro no que se refere a soluções militares e de Defesa com uso de tecnologias e desenvolvimentos de armas inteligentes. Mais sobre o contrato estadual com o grupo Edge, ver: Grupo EDGE e Governo de São Paulo firmam parceria para iniciativa de segurança pública. Falaremos mais do grupo adiante.

³ Jackie Wang. Capitalismo Carcerário. São Paulo: Igra Kniga, 2022.

Ver: Elizabeth Hinton. From the War on Poverty to the War on Crime – The Making of Mass Incarceration in America. Cambridge/Massachusetts: Harvard University Press, 2016.

Sobre o programa Detecta, ver: Anna Carolina Rodrigues Ramalho. Vigilância e securitização em São Paulo: o projeto Detecta e o mercado internacional de tecnologia da informação e comunicação. Trabalho de Conclusão do Curso de Relações Internacionais da EPPEN-UNIFESP. São Paulo: UNIFESP, 2024. 

Sobre esse dispositivo, ver: Edson Passetti et al. Ecopolítica. São Paulo: Hedra, 2019, pp. 259-298.

Trata-se de uma plataforma que cruza banco de dados criminais com o CPF de todos os cidadãos brasileiros. Sobre a Plataforma Cortex, chamado de Guardião do Brasil,  ver Plataforma de Monitoramento Córtex — Ministério da Justiça e Segurança Pública. Sobre seus usos possíveis, ver CNMP, MPF e Ministério da Justiça firmam acordo para acesso à Plataforma Integrada de Operações e Monitoramento de Segurança Pública.  

O grupo Edge é um conglomerado estatal dos Emirados Árabes Unidos composto por cerca de 25 empresas especializadas em tecnologia de segurança e Defesa. O grupo fabrica desde sistemas operacionais a mísseis e drones armados e atua no Brasil prestando serviço de segurança a diversas empresas, como o sistema Globo de telecomunicações. Também possui participação em empresas brasileiras do setor, como a SIATT (Sistemas Integrados de Alto Teor Tecnológico), fabricante de mísseis sediado no Parque tecnológico de São José do Campos, fundada em 2015, e a Condor – tecnologias não letais, fundada em 1985, e líder global no setor de armamento menos letal. O grupo Edge também controla BeaconRed, fundada por Faisal Al Bannai, antiga Dark Matters, empresa de espionagem mercenária. Sobre o grupo Edge, ver: About Us | EDGE Group PJSC

Michel Foucault. Nascimento da biopolítica. Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008, pp. 297-395.

¹⁰ LASINTEC. Boletim (Anti)Segurança #33: "Em defesa da sociedade: as operações Escudo e Verão da PM de São Paulo”. 31 de março de 2024.

¹¹ Para saber mais sobre a empresa Ramos Militar, que tem o lema “segurança para sua carreira acontecer, ver: Ramos Militar.

¹² Sobre o programa de tolerância zero e suas repercussões globais no início deste século, ver Loïc Wacquant. As prisões da miséria. Tradução André Telles. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

¹³ Sobre este grupo da FGV, ver: Centro de Estudos em Analytics e Políticas de Segurança | FGV EAESP.

¹⁴ O projeto de pesquisa está registrado no site da FAPESP como auxílio à pesquisa 20/07019-2 - Segurança pública, Polícia - BV FAPESP. (2024). Fapesp.br. 

¹⁵ O Smart Sampa foi criado pela prefeitura de São Paulo em agosto de 2023. Ele substituiu o City Câmeras, criado na gestão João Dória. Seu diferencial é a integração das câmeras a um sistema de reconhecimento por biometria facial, que já vem sendo utilizado em operações policiais, como a Operação Delegada, no centro da cidade. Ele opera com cerca de 40 mil câmeras, sendo 20 mil próprias da administração municipal e as outras 20 mil são câmeras privadas integradas ao programa por meio do software operacional. A prefeitura paga 9,8 milhões de reais por mês ao consórcio que venceu a licitação para operar o sistema de reconhecimento facial. A central de controle do Smart Sampa foi instalada no prédio central dos Correios no Vale do Anhangabaú. Sobre o programa municipal, ver: Prefeito assina contrato para o início do Smart Sampa, maior programa de videomonitoramento da cidade com até 40 mil câmeras - Prefeitura de São Paulo

¹⁶ Sobre como a PEC da segurança pública pretende aumentar os poderes policiais controlados pela burocracia federal, ver o que escreve a própria ministro da justiça, ex-integrante do STF, Ricardo Lewandovski: PEC deve atribuir à União função de coordenar o Sistema Único de Segurança Pública.