Boletim (Anti)Segurança #34
60 anos do golpe Civil-Militar de 1964: metamorfoses e permanências das tecnologias de contrainsurgência na era democrática
Em uma madrugada, fui retirada da cela, amarrada e algemada, encapuzada e levada para o pátio. Aos gritos, diziam que eu seria executada e levada para ser “desovada”. Como um trabalho do Esquadrão da Morte. Eu acreditei e, naquele momento, morri um pouco. (...) As mulheres que demonstravam maior resistência às tonturas eram “premiadas”: sempre estavam sendo chamadas para os “bate-papos” de madrugada e eram utilizadas como cobaias em aulas para novos torturadores.
Cecília Coimbra. Fragmentos de memórias malditas: invenção de si e de mundos, p. 129.
O golpe de 1964 completou 60 anos neste 1º de abril. Ao longo dos meses de março e abril, diversos foram os eventos e textos produzidos e circulados sobre a Ditadura Civil-Militar instaurada por meio de tal golpe, sobre suas várias dimensões, causas, heranças e repercussões nessa data de memória.
Entretanto, o governo federal optou por uma postura oficial de silêncio, alegando que essa conduta iria apaziguar ou atenuar as relações dos civis com as Forças Armadas em um esquema de contrapartida, em que os comandos das forças e seus espaços de representação na arena política não se pronunciariam celebrando oficialmente o golpe e a Ditadura, como fizeram na administração anterior. Não é desnecessário sublinhar que, mesmo nos parâmetros mais protocolares de democracias, nenhum governo precisa oferecer contrapartidas para que as Forças Armadas não se manifestem dessa forma.
Assim, a decisão de “conciliação” já é acovardada por si só: as Forças Armadas constantemente buscam impor sua versão sobre 1964 e sobre o regime autoritário, e a disputa pela memória histórica do Golpe e da Ditadura Civil-Militar é um ponto profundamente sensível para suas vítimas. Não por acaso, a Comissão Nacional da Verdade foi um dos pontos de extenuação das relações entre os comandos militares e a ex-Presidente Dilma Rousseff, contribuindo para o suporte castrense à sua deposição. No entanto, a decisão é ainda mais estarrecedora ao considerar o histórico recente do envolvimento político dos militares no país. De corrupção à gestão da pandemia, e incluindo as recentes elucidações do assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes sob a Intervenção Federal chefiada pelo General Braga Netto, as Forças Armadas estão diretamente implicadas em um conjunto de violências e gastos econômicos inexplicáveis; seguem insistindo em impor suas vontades e verdades, e fazem da população brasileira seu teatro de operações.
Aqui, nossa contribuição enquanto coletivo anti-segurança é chamar a atenção para este último fenômeno, que está intimamente ligado a 1964, mas sublinha toda a compreensão militar de como as forças devem ser empregadas; mais profundamente, como se organiza e distribui a violência para produzir segurança no país até hoje: a contrainsurgência.
No Boletim anterior (março/2024), expusemos a brutalidade policial das Operações Verão e Escudo e a ativação da figura policial-política proeminente no cenário contemporâneo ao sublinhar as heranças das condições de criação da ROTA pela experiência da Operação Bandeirantes (Oban) e pela criação do sistema DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna). A produção de expertises militares e policiais no contexto da ditadura é um ponto importante na costura de uma forma histórica da organização e distribuição da violência no Brasil que vai se repaginando e reproduzindo no momento atual, não como algo que ocorre apesar da democracia, mas por meio dela.
Pesquisadores brasileiros têm se dedicado a compreender a ação militar no Brasil sob o signo da Pacificação, um processo de imposição, manutenção e construção da ordem social – com suas divisões, hierarquizações e sistemas de opressão e exploração – pela lei e pela força. Esse processo é profundamente informado pela violência colonial e sua reprodução ao longo da estabilização do Império e transição para a República, feita por meio de intervenção das armas. Entretanto, com a Ditadura, essa violência é sistematizada na contrainsurgência, também conhecida como guerra contra-revolucionária. Isso não é exclusivo do Brasil, porém se manifestará aqui de forma bastante singular.
Logo após a Segunda Guerra, as guerras de libertação das colônias e das “zonas de influência” das potências mundiais desencadearam um processo de re-adaptação dos exércitos europeus às guerras de colonização. O formato de guerra sobre as populações é constitutivo da formação dos Estados modernos e nunca deixou de fazer parte da produção da violência no sistema capitalista. O que ocorre a partir de então, para a Europa, é uma espécie de bifurcação entre forças de policiamento de formatos distintos para manterem a violência sobre as populações e exércitos profissionais dedicados às guerras de Estados contra Estados, ou melhor ainda, de organizações militares contra organizações militares, ambas de formatos semelhantes: força terrestre contra força terrestre, marinha contra marinha e, posteriormente, aeronaves contra aeronaves, poder nuclear contra poder nuclear, agente de inteligência contra agente de inteligência, e assim por diante. Por mais que estejam numa categoria de inimizade política, trata-se de pares burocráticos complementares e apoiados mutuamente: oponentes que se reconhecem num dado formato de legitimidade.
Com as guerras de libertação, surge uma urgência de “re-ensinar” essas forças a atuarem contra oponentes que não são vistos como pares, pois não estão organizados da mesma forma, já que não são exércitos “formais”. Uma das grandes referências nessa adaptação é a França – via expoentes como Roger Trinquier e David Galula – cuja experiência na Indochina e na Argélia se dedicam a produzir as doutrinas de contrainsurgência: conhecimento militar especificamente desenhado para guiar forças armadas no controle de um terreno e população estrangeiros, em que tudo é percebido como potencialmente hostil. Cabe às forças, porém, distinguir e mapear zonas e pessoas entre ameaças, aliados, pontos de interesse, problemas etc.
Resumidamente, as doutrinas de contrainsurgência produzidas na segunda metade do século XX vão frisar, extensivamente, o seguinte encadeamento: a) o sucesso de uma contrainsurgência é a conservação da ordem e estabilização no longo-prazo. Vitórias estritamente combativas, como derrotas de grupos armados e conquistas territoriais, não atestam o sucesso, pois o objetivo político da contrainsurgência é de controle, dominação, cujo propósito final é o de evitar que tais grupos ressurjam. É necessário ter, logo, b) o domínio da informação. Produzir informação, via vigilância e monitoramento constante (e fazendo uso da tortura), é imprescindível para guiar as ações no terreno e, junto à população, identificar pessoas, alvos, questões culturais, sociais econômicas que possam favorecer agitações, e assim por diante. Ainda, dominar a informação permite trabalhar com a população como rede de informantes e de aliados, e utilizar meios de comunicação para fomentar uma opinião pública, a fim de c) conquistar os Corações e Mentes.
Como a contrainsurgência tem um objetivo de controle político mais evidenciado, o apoio político da população é vital tanto para manter uma rede de colaboradores, quanto para dissuadir revoltas/novas insurgências e assegurar a estabilização a longo prazo. Por isso, atuar junto à população com serviços, assistências e provisão de estruturas (escolas, hospitais, estradas) faz parte da necessidade de adaptação das forças a fim de garantir o sucesso da operação. Treinar forças locais para conduzir essas atividades é uma das estratégias de saída da força contrainsurgente.
Ainda, um mecanismo de fundo que opera na produção da contra insurgência é a prática do mapeamento – que, novamente, é característica da inscrição de autoridade das guerras de colonização e da pacificação. Para estabelecer o controle militar sobre uma dada área e população, as forças precisam interpretar o território para um esquema que faça sentido para a contrainsurgência: zonas mais ou menos populosas, disposição de comércio, localização de autoridades, onde há produção de alimentos, recursos hídricos, regiões de montanha/deserto, entre outras inúmeras questões que dizem respeito à vida local são esquadrinhadas e loteadas entre áreas de segurança, áreas sensíveis ou áreas problemas, áreas para negociações, vias de acesso, pontos de encontro, onde estabelecer checkpoints para controlar o fluxo de pessoas e mercadoria entre essas áreas, e assim por diante. Isso é uma característica própria do exercício político para o controle social; a especificidade, aqui, é que é sistematizado pelo olhar castrense.
Esse aspecto da sistematização e produção doutrinária é importante porque diz respeito à linguagem das forças. Organizações militares buscam sistematizar o conhecimento, tanto no sentido de orientar ações futuras, mas também de reunir suas experiências prévias, registrando o que aprenderam. No papel, oficiais vão indicar o que conceituam como terrorismo, comportamentos suspeitos, como devem fichar as pessoas, mapear o terreno e produzir informações, além de como manipular informações a seu favor, e um conjunto de expertises que tem a população como alvo. Produzir esse conhecimento é importante para as forças, a fim de se manterem atualizadas e preparadas, assim como fazê-lo circular com o objetivo de difundir esse tipo de conhecimento junto a forças de outros países, inclusive para assegurar estabilização em níveis locais e regionais.
A formação militar brasileira é historicamente influenciada pelos intercâmbios com oficiais franceses, e a circulação dessas doutrinas também é aquecida por um fenômeno incontornável na compreensão do período que é a influência dos Estados Unidos, especialmente via Escola das Américas e intercâmbios dos oficiais brasileiros. Um ponto específico da influência estadunidense é a mobilização da associação entre segurança e desenvolvimento e a promoção de ações cívicas (civic actions, no original), como estratégias de estabilização e treinamento de forças locais para ordenar e estruturar populações na esteira da conquista de corações e mentes. O nexo segurança-desenvolvimento vai ser superdimensionado para a Guerra Fria como um todo – e segue presente até hoje, de outras formas –, mas é especialmente importante para as concepções militares de contrainsurgência e estabilização e para o pensamento militar brasileiro.
Formou-se uma espécie de triângulo da contrainsurgência entre América do Sul/Brasil, França e EUA, em que oficiais ensinam, aprendem e trocam experiências. É evidente que essa troca não é simétrica, dadas as diferenças entre disposições de poderes entre as potências de centro e o Brasil; é, porém, muito importante que evitemos tratar desse processo como uma imposição, por dois motivos. Primeiro, pelo próprio histórico de formação militar brasileira, dado que a ação militar do tipo policiamento robusto, contenção de revoltas e de ações do tipo construtoras é incipiente – por isso a lógica da Pacificação é tão importante para entender a organização da violência no país. Segundo, pelo movimento dos oficiais brasileiros de buscar aproximações com os EUA e adaptá-los ao país na época, vista a criação da Escola Superior de Guerra (ESG) que, diferentemente da inspiração estadunidense, incluiu civis – burocratas, empresários, figuras de interesse da indústria e do mundo da política – em seus cursos, fator definitivo para levar o Golpe de 1964 adiante.
Foi nessa Escola que as forças armadas produziram a Doutrina de Segurança Nacional, na qual se manifestam as doutrinas de contrainsurgência junto de uma ideologia de Segurança Nacional de conservação do ordenamento político e social, perseguição à dissidência e de promoção do progresso, do desenvolvimento da Nação rumo a um “bem comum” – vontades e aspirações nacionais interpretadas pelas forças. Trata-se de um pensamento autoritário compartilhado com expoentes do pensamento social brasileiro como Alberto Torres e Oliveira Vianna, que defendiam a centralização do poder em forças construtoras, edificadoras e capazes de suprir os males da desagregação. Não necessariamente seriam forças militares, mas as forças armadas tomaram essa posição para si.
Assim, arraigou-se via Doutrina de Segurança Nacional um imperativo de conservação do ordenamento social que vê subversão no dissenso. Trata-se de uma lente superdimensionada de Segurança Nacional que vê ameaças na luta de classes, nos movimentos étnico-raciais, em movimentos que contestam o núcleo familiar; e que vê riscos dessas ameaças se manifestarem na vida político-institucional, na educação das crianças e jovens, na instabilidade econômica, na produção científica, na mídia. Por causa disso, essa lente superdimensionada de Segurança Nacional é acompanhada por uma postura contrainsurgente no aparato de segurança para administrar a população.
Junto ao Sistema Nacional de Informações (SNI) e ao DOI-CODI, a ESG funcionou como espaço para circulação do conhecimento e produção dessa lógica de subversão interna a ser combatida. Indo mais além, a Escola contribui para a formação de um pensamento de combate à subversão externo às fronteiras brasileiras pensando no entorno sul-americano, no continente, e mesmo nas áreas ultramarinas que fossem de interesse da atuação brasileira – trata-se da linha de pensamento da geopolítica, sendo um dos principais expoentes o oficial Golbery do Couto e Silva.
A transição não supera esse ideário. A Escola Superior de Guerra permanece ativa, formando oficiais e civis, e hoje possui até um programa de pós-graduação acadêmico próprio. Apesar de o SNI ter sido formalmente extinto, as Forças Armadas permanecem ocupando uma posição privilegiada nas atividades de inteligência do país via Gabinete de Segurança Institucional (GSI) – cuja liderança é cargo privativo de oficiais generais – e mesmo pela Agência Brasileira de Inteligência (Abin).
No que diz respeito ao emprego das forças armadas, a contrainsurgência segue explícita na concepção militar das operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) e sua visão geral de Pacificação. Apesar de um caráter anunciado como excepcional, as GLO se tornaram uma realidade anual para o cenário da segurança pública e para a população brasileira, pois, desde 1996, não houve um ano em que uma GLO não tenha sido deflagrada. O mecanismo da GLO permite às forças armadas atuarem enquanto força policial, mas também lhes permite coordenar as forças policiais durante as operações. Estas são essencialmente voltadas para estabilização interna e se expandiram como guarda-chuva para diferentes situações, como a segurança de eleições, suprir a segurança durante paralisações de Polícias Militares, combate à violência urbana e crimes florestais, além de abrirem margem para outras.
Nessas operações, as Forças Armadas atuam no policiamento robusto, ou seja, no combate ostensivo nas ruas. Seguindo a lógica contrainsurgente, no entanto, entendem que se trata de ambientes de manutenção da opinião pública favorável, de conquista de corações e mentes e de dissuasão de forças oponentes – ou “agentes perturbadores da ordem pública”. Isso se aplica tanto no contexto interno ao Brasil, quanto na atuação das forças brasileiras em operações de estabilização no âmbito das Nações Unidas. Mobilizam preferencialmente as atividades de inteligência (vigilância e monitoramento), operações psicológicas e de comunicação social para operar sobre a população, que é considerada potencialmente disruptiva. Ao longo dessas últimas décadas, as forças conseguiram reforços tecnológicos para esse tipo de ação – especialmente com as GLOs dos megaeventos – como a integração de sistemas de comunicação, instalação de centros de comando e controle para monitoramento das cidades, drones militares com maior capacidade de obtenção de imagens e reconhecimento de alvos, cursos de combate ao terrorismo, entre outros. Outro elemento de contrainsurgência que se re-assenta no contexto contemporâneo é a conservação das Operações Especiais. As forças especiais – apelidadas de kids pretos nas investigações do 8 de Janeiro de 2023 –, que já faziam parte dos destacamentos da ditadura, são repaginadas nas Operações de Paz, como as ações conduzidas no Haiti, ou nas GLOs dentro do território nacional.
Como indicamos, o Brasil não é exclusivo nesse tipo de experiência. Os países que estiveram diretamente envolvidos na produção da contrainsurgência durante a Guerra Fria continuam produzindo doutrinas e conhecimento sobre esse tipo de engajamento, principalmente no contexto pós-11 de Setembro e as operações de contraterrorismo. Forças Armadas dos EUA, França e demais países na OTAN passam se dedicar mais a pensar como aprimorar a guerra em meio à população, ou guerras assimétricas, intervenções, operações de estabilização, vários sinônimos para como empregar uma força militar contra uma subversão potencial difusa em terras estrangeiras ou estranhas. Um dos termos que vigora nesse contexto é a ideia de terreno humano. Nos EUA, o human-terrain system foi um projeto de vinculação de cientistas sociais às brigadas militares no Afeganistão, Iraque e outras regiões sob intervenção para facilitar a compreensão dos elementos culturais, língua, religião, relações sociais, econômicas e políticas do local, bem como relações das pessoas com o terreno. Apesar desse sistema em específico ter sido descontinuado, a lógica de terreno humano, ou seja, de compreender o teatro de operações como uma díade terreno-população permanece – o que vem desde do histórico de dominação colonial e a apreensão sistematizada dessa dominação no universo militar pela contrainsurgência, como indicado. Outro local em que essa lógica é muito forte é na Colômbia, onde a contrainsurgência se tornou uma expertise.
Voltando ao Brasil, o fato desses termos aparecerem nas concepções de engajamento internacional e doméstico é muito significativo, pois reforça que, mesmo em território nacional, vigora a lógica de que apesar de serem terrenos-populações brasileiros, há algo de diferente a ser interpretado e gerido pelo elemento militar a fim de evitar a manifestação de ameaças. Além das operações, outra forma rotineira de expressar essa preocupação em interpretar e agir sobre um terreno que contribui na reprodução da contrainsurgência é a continuidade das ações cívico-sociais (ACISO).
Trata-se de ações que acompanham a história de pacificação das forças armadas brasileiras desde Caxias e Rondon. Passam a ser chamadas como ações cívico-sociais já no contexto da década de 1960, por inspiração no nome civic actions, que inserem as forças armadas nas mais variadas atividades de assistência à população, como serviços de saúde e educação. As ACISO podem ser feitas enquanto ações pontuais, por decisão do comando da força específica, ou junto a outras formas de ação em vigor, como exercícios militares, operações na fronteira ou operações de GLO e de Paz. Essas ações funcionam como um meio de reforçar a presença militar junto à sociedade, como uma espécie de ajuste de autoridade, ao mesmo tempo em que contribuem para a comunicação social e capilarização do elemento militar em diferentes locais, sobre diferentes grupos sociais.
Assim, a reprodução e continuidade da contrainsurgência, 60 anos depois do golpe, é mais do que algo que resta da ditadura. A lógica de contrainsurgência contribuiu para o golpe, para a conservação do regime, dele se alimentou, também se alimentou de circuitos internacionais que se re-aqueceram no século XXI, e segue se refazendo no campo militar de produção de conhecimento e inovações tecnológicas. Não significa afirmar, enfim, que o fato de as Forças Armadas buscarem ter domínio da informação, conduzir operações psicológicas, especiais, conquistar corações e mentes e estar sempre operacionalizando com o terreno humano, que de fato têm esse domínio.
Por isso, voltamos ao ponto inicial, sobre o silêncio do governo federal sobre os 60 anos do golpe. Contestar as informações produzidas no e pelo meio militar é extremamente importante para frear sua movimentação. A díade terreno-população, hoje, é atravessada e difundida pelas tecnologias de informação e inúmeras formas de captura, produção e armazenamento de dados, e é verdade que as forças tentam se manter presentes e podem até achar que, com mais tecnologias, alcançam um status de omnisciência enquanto observadoras e intérpretes – nenhum agente político, contudo, é omnisciente, tampouco omnipotente. As Forças Armadas não são as intérpretes mais bem-interessadas das aspirações e vontades do povo brasileiro, não são conhecedoras mais técnicas das realidades nacionais e não são donas da verdade sobre 1964, ou sobre a transição, ou sobre o sucesso que se auto-atribuem no Haiti, ou sobre o fracasso que atribuem à administração civil nas operações das UPPs e na Intervenção Federal.
Contestar o militarismo precisa vir acompanhado, enfim, de uma contestação firme contra as políticas de segurança. A ideia de conquistar corações e mentes e opiniões públicas favoráveis às corporações armadas é compartilhada com o aparato de segurança de maneira mais ampla, pois a conservação da ordem se apresenta como imperativo que é compartilhado quase como consenso. Operações de GLO, de policiamento das fronteiras, de segurança em várias frentes que visam combater as várias facetas da criminalidade, desordem, ou dissenso são socialmente amparadas por conservadorismos e reacionarismos profundos que compartilham e respaldam esse olhar castrense de administração da vida política e social. Exemplo recente desse tipo de movimento foi a aprovação - por ampla maioria no Senado - da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) de criminalização do porte e posse de drogas em quaisquer quantidades, o que reaquece os dispositivos da “guerra às drogas”, fenômeno que mobiliza de sobremaneira os aparatos policial e militar do Estado.
Recusar o militarismo, portanto, significa atentar para o duplo elemento civil que o acompanha: 1) os objetivos estratégicos dos militares em serem agentes modeladores (não apenas moderadores) da vida civil; 2) o desejo civil por uma ordem que, no limite, seja militar. Como visto acima, não basta focar apenas no militarismo e no que resta do que foi a ditadura instaurada pelo golpe de 1964. Houve metaformoses nas continuidades das tecnologias de contrainsurgência desenvolvidas dentro das casernas da ditadura. Destacamos três, em síntese:
1) uma democracia pautada pelo combate ao inimigo e operacionalizada pelos dispositivos de segurança militares, policiais e civis e, portanto, uma democracia securitária;
2) uma cidadania descolada da lógica do desenvolvimento nacional, pois é operacionalizada pelo capital humano, ou seja, pelo desenvolvimento pessoal e sustentável, produzindo condutas que buscam a sustentabilidade desse desenvolvimento pessoal demandando segurança e seguridade (privadas e estatais), um cidadão-polícia empreendendo de forma segura contra tudo e contra todos;
3) relações humanas mediadas por dispositivos eletrônicos e enquadradas por medidas jurídicas, que operam o controle contínuo pelo dispositivo monitoramento e judicialização da vida, produzindo, também, o conjunto de informações que alimentam a guerra em curso.
Pelo exposto, não basta desmilitarizar a política que, ao fim, também é uma operação de guerra com suas táticas e estratégias, amigos e inimigos. É preciso desmilitarizar a vida e isso passa pela memória e pela verdade dos tempos da Ditadura Civil-Militar, instalada há 60 anos pelo golpe de 1º de abril de 1964.
¹ Lidar com as Forças Armadas, de um ponto de vista da administração política, é lidar com burocracias fardadas: há negociações, ajustes, disputas, concessões inerentes à administração pública. “Negociar” com essas burocracias, contudo, é uma atividade diferente do que negociar com as demais, na medida em que se tratam de organizações armadas; a linha entre uma negociação e uma chantagem, logo, é facilmente operacionalizada por quem tem a arma – e por isso é necessário assumir posturas firmes em pontos como esse. Alguns dos trabalhos que fornecem sínteses recentes dessa discussão com o Brasil são: CORTINHAS, J. da S. e VITELLI, M. G.. Limitações Das Reformas Para O Controle Civil Sobre As Forças Armadas Nos Governos do PT (2003-2016). Revista Brasileira De Estudos De Defesa, vol. 7, nº 2, julho de 2021; e PENIDO, A., F. Costa e JANOT, M. Forças Armadas no Brasil: profissão e intervenção política. BIB - Revista Brasileira De Informação Bibliográfica Em Ciências Sociais, nº 96, setembro de 2021.
² Ver ‘A Conciliação que nos trouxe até aqui’, de Lucas Pedretti.
³ Tratamos disso no Boletim n.11, após a ordem do dia de celebração ao Golpe em 2021.
⁴ Ver ‘Os Militares e o golpe de 2016’, de Ana Penido, Mariana Janot e Jorge Rodrigues.
⁵ Recomendamos a leitura dos nossos Boletins da Pandemia e Anti-Segurança, e dos Informes Especiais do Observatório Sul-Americano de Defesa e Forças Armadas entre os anos de 2020 e 2022.
⁶ Ver: SOUZA, A. B. O resgate do que se desmancha: a cartografia da pacificação da Balaiada. Topoi, Rio de Janeiro, v. 9, n. 16, p. 233–257, janeiro de 2008; RODRIGUES, T., MENDONÇA, T. e MACIEL, T. Guerra para Dentro: Pacificação como doutrina e prática das Forças Armadas do Brasil. Revista Brasileira de Estudos de Defesa, [S. l.], v. 8, n. 2, 2022.
⁷ CENTENO, M. Sangre y deuda: ciudades, Estado y construcción de nación en América Latina. Bogotá, D.C.: Universidad Nacional de Colombia, Instituto de Estudios Urbanos-IEU. 2014.
⁸ ALLIEZ, E. e Lazzarato, M. Guerras e Capital. Editora Ubu, São Paulo, 2021.
⁹ TRINQUIER, Roger. Modern Warfare: a french view on counterinsurgency. Pall Mall Press, Londres, 1964.
¹⁰ GALULA, David. Counter-insurgency Warfare: theory and practice. FREDERICK A. PRAEGER, Nova Iorque e Londres, 1964.
¹¹ MARTINS-FILHO. J. R. A Conexão Francesa: da Argélia ao Araguaia. Varia Historia, Belo Horizonte, vol.28, n. 48, julho/dezembro de 2012.
¹² DUARTE-PLON, L. A tortura como arma de guerra - da Argélia ao Brasil: como os militares franceses exportaram os esquadrões da morte e o terrorismo de Estado. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2016.
¹³ DREIFUSS, R. 1964, a conquista do Estado: ação política, poder e golpe de classe. Vozes, Petrópolis, 1981. Sobre a direta participação e contribuição de empresas no golpe e nas violações de direitos, ver também o Informe Público com resultados parciais do projeto “Responsabilidade de empresas por violações de direitos durante a Ditadura”, realizado pelo Centro de Antropologia e Arqueologia Forense da Unifesp (CAAF).
¹⁴ FERNANDA, A. A reformulação da Doutrina de Segurança Nacional pela Escola Superior de Guerra no Brasil: a geopolítica de Golbery do Couto e Silva. Antíteses, [S. l.], v. 2, n. 4, p. 831-856, julho/dezembro de. 2009.
¹⁵ MIYAMOTO, S. e BERTAZZO, J. A Política das Forças Armadas: conflitos e institucionalização do regime militar. In: MUNTEAL FILHO, O.; FREIXO, A. de; FREITAS, J. V. (org.). Tempo negro, temperatura sufocante: Estado e sociedade no Brasil do AI-5. Contraponto Editora: Editora da PUC-Rio, Rio de Janeiro, 2008.
¹⁶ ver: MENDONÇA, T. Pacificação e contrainsurgência: as forças de Pacificação do exército brasileiro nos complexos do Alemão e da Penha (2010-2012). 2017. 157 f. Dissertação (Mestrado em Estudos Estratégicos da Defesa e da Segurança) - Instituto de Estudos Estratégicos da Defesa e da Segurança, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2017; JANOT, M. e SOARES, S. Uma “guerra introvertida” e o pluriverso decolonizado: análise das práticas securitárias das forças armadas no Brasil In: SAINT-PIERRE, H.; MEI, E. e ANJOS,, I. Entre as assombrações do passado e as sementes do futuro: notas sobre a defesa do Sul Global. Editora UNESP, São Paulo, 2023.
¹⁷ Os dados são públicos no Ministério da Defesa. Ver também: CASTRO, C. et al. Forças Armadas na Segurança Pública: a visão militar. FGV Editora, Rio de Janeiro, 2023.
¹⁸ Recomendamos a leitura dos nossos Boletins Anti-Segurança n. 9 e 10. ver também: BRUNO, F. et al. Tecnopolíticas de vigilância: perspectivas da margem. Boitempo, São Paulo, 2018; FERREIRA, Ivo. Segurança para quem?: copa do mundo, governo policial e democracia no Brasil. Dissertação (mestrado em Filosofia). Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade Federal de São Paulo. Guarulhos. 2023.
¹⁹ Ver VIANA, M. Post-conflict Colombia and the Global Circulation of Military Expertise. Palgrave MacMilliam. 2022.
²⁰ PASSOS, A. From counterinsurgency to law-and-order operations: an analysis of social civic actions implemented by the Brazilian Army. Conflict, Security & Development, 23(2), 2023.
²¹ Ver MARQUES, A. Amazônia: pensamento e presença militar. Tese. Programa de pós-graduação em ciência política da USP. São Paulo, 2007.
²² Para um debate sobre as continuidades e incorporação de elementos da ditadura no regime democrático, ver: TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir. O que resta da ditadura. São Paulo: Boitempo, 2010. (Coleção Estado de Sítio).
²³ Ver a provocação de Lucy Suchman sobre pesquisas e jornalismo críticos feitos a partir de locais sob ação militar em contraterrorismo/contrainsurgência como contestação dos imaginários de omnisciência. SUCHMAN, L. Imaginaries of omniscience: Automating intelligence in the US Department of Defense. Social Studies of Science, 2022.
Referências Bibliográficas
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