Boletim (Anti)Segurança #38

Há nove anos policiais executaram a maior chacina da história do estado de São Paulo:

nem perdão, nem esquecimento!

Há nove anos policiais executaram a maior chacina da história do estado de São Paulo: nem perdão, nem esquecimento!

 

Uma cabeça quente não funciona bem.

Uma cabeça fria também não.

“Ajagunã ganha uma cabeça nova”,

mito Iorubá contado no Brasil 



Policiais que fazem bico como segurança privada durante suas folgas. Execuções perpetradas por homens encapuzados contra alvos aleatórios em um bairro pobre da cidade. Mães que choram e se mobilizam para buscar a verdade e manter viva a memória dos seus filhos executados pela polícia. Intermináveis processos judiciais que vão e vêm sem chegar a um termo. Condenações. Absolvições. Dados estatísticos. Pronunciamentos de autoridades. Matérias na imprensa. Falas de especialistas. Notas de organizações de Direitos Humanos. Comemorações de cidadãos de bem. Policiais, promotores, advogados, juízes, desembargadores, ministros, governadores. O processo. O castelo. A colônia penal. Nem Kafka imaginaria. 

O Brasil foi fundado e segue sob o signo do massacre, mas, como se não bastasse, o massacre aciona uma rede infinita de ações e de pessoas que passam a girar em torno dele. É preciso manter o espetáculo macabro da morte coletiva vivo, pois interessa o ato da execução, mas interessa, sobretudo, os efeitos de poder que ele gera nos que sobreviveram e o que se instala de medo em torno dele. Generaliza-se a tensão de viver sob a sombra da morte violenta que, independentemente da identidade ou filiação do executor, tem como agente central o Estado e suas políticas de segurança. 

Neste dia 13 de agosto de 2024 completam-se 09 (nove) anos da Chacina de Osasco e Barueri. Entre os dias 8 e 13 de agosto de 2015 foram executadas entre 23 e 28 pessoas (o número até hoje não pode ser estabelecido com exatidão) nas cidades de Osasco, Barueri, Carapicuíba e Itapevi. Execuções sumárias, uma delas com 21 disparos contra um único corpo que somou 40 perfurações. A explicação mais aceita é que se trata de um ato de vingança motivado pela morte de um policial que estava fazendo bico como segurança em sua folga. Os executores são policiais militares e guardas civis metropolitanos. Os executados são os de sempre: homens jovens, não-brancos, pobres e moradores da periferia e uma menina de apenas 16 anos. 

Como recorrentemente é dito pelas mães: cansa. As histórias se repetem e giram em torno de marcadores bem conhecidos: seletividade do sistema de justiça criminal e do direito penal, execuções extrajudiciais, profissionais da violência, indistinção entre legal e ilegal, alvos presumíveis, executores mais que conhecidos e uma retórica democrática e humanitária que acaba por legitimar e perpetuar o massacre. O ciclo de violências, em sua distribuição racional e seletiva, é interminável para que a resistência a ele se esgote, seja vencida pelo cansaço, pelo esquecimento e pela impotência. Por isso, nunca é demais afirmar que cada execução e cada massacre é um ato político, uma manifestação inequívoca do racismo de Estado.

No caso específico da Chacina de Osasco e Barueri, basta rememorar duas informações objetivas para se ter a noção do arco político do massacre: a primeira é que um dos apontados inicialmente como participante das execuções, o policial militar Victor Cristilder dos Santos, foi absolvido por júri popular em 26 de fevereiro de 2021, junto com o guarda civil metropolitano Sérgio Manhanhã, em um processo que envolveu uma revoltante tentativa de criminalização dos movimentos de mães. Em 5 de maio de 2023, por decisão do governador do estado provocada por recurso da defesa de Cristilder, o policial militar foi reintegrado à corporação da PM de São Paulo. A segunda lembrança importante nesses 9 anos de chacina, é que o secretário de segurança à época do massacre, Alexandre de Moraes, hoje é ministro do Supremo Tribunal Federal, após ter sido Ministro da Justiça no governo de Michel Temer. Essas duas notas dão a dimensão de como o sistema de justiça criminal, do policial que aperta o gatilho ao ministro do STF, está comprometido até a testa com a produção e perpetuação do massacre.

Nada disso é suficiente para calar as mães, os parentes e amigos dos executados. Todos os anos as mães se reúnem com os seus para manter viva a memória dos executados e para afirmar a verdade incômoda de contrapoder que diz que o responsável por essas mortes é o Estado, executando seus objetivos políticos de extermínio por meio da polícia. Essa verdade, por mais que tentem, seguirá ecoando, ainda que o silêncio sorridente de São Paulo siga fazendo ouvidos moucos para ela. Mas não se vive só de esquentar a cabeça com os ataques perpetrados pelo inimigo, também se esfria a cabeça com o encontro, a troca e a vivência coletiva da luta que confere força para seguir sem se esquecer das injustiças. 

Este esforço de rememorar e elaborar coletivamente a vida dos filhos e da filha executados não se dirige somente ao ato do extermínio. Nestes atos de memória, o que se evoca, conta e rememora são camadas de experiência cotidiana de enfrentamento da violência de Estado contra estes filhos, filha, mães, filhos dos filhos, amigos, irmãos, colegas... que transborda na execução e não se resume a elas. À violência policial tão evidente nas chacinas cotidianas se soma a violência de Estado que constitui o normal: as formas de controle dos corpos pela cidade; a cidade nem bem começada e já ruína na qual habitamos; os empregos, subempregos e suas humilhações; a escola que (de)forma para empregos de quinta. Em meio à violência é preciso forjar um lugar de memória que não perpetue a barbárie, que ao nomeá-la não a repita ou a glamorize. No meio desta violência distendida, constrói-se contra a violência e o esquecimento, uma memória que é a afronta de estar vivo quando o plano do estado era matar e subjugar. 

Há cinco anos o LASInTec trabalha junto à Associação 13 de Agosto e aos demais grupos amigos como a Amparar – Associação de Familiares e Amigas/os de Presas/os, o Coletivo DAR, a Frente Estadual pelo Desencarceramento de São Paulo, a Geledés – Instituto da Mulher Negra, o Movimento Independente Mães de Maio, o Observatório de Direitos Humanos da EPPEN, o CAAF-Unifesp, o CMUrb-Unifesp e outros grupos, pessoas e movimentos que vêm e vão  somando-se a essa luta. 

De cabeça fria, celebremos os muitos encontros e potências que foram possíveis nesses anos; de cabeça quente constatamos, pelo trabalho com as mães e as pesquisas que desenvolvemos, que episódios como este da Chacina de Osasco e Barueri, apesar de remeterem ao histórico de massacres fundante do Brasil, explicitam as formas de uma democracia securitária que reflete o desejo do cidadão-polícia, a judicialização da vida e a colonização da política pelo imperativo da segurança e seus burocratas armados. Explicita, também, que as tecnologias de poder contemporâneas, ainda que sigam exercendo um poder disciplinar sobre os corpos confinando-os em instituições austeras como as prisões, são mais preocupadas hoje em expandir controles a céu a aberto pelos monitoramentos de zonas de guerra nas quais se generaliza a (in)segurança para se exercitar o massacre, conferindo o poder soberano de morte às polícias, facções, milícias e toda sorte de gangue armada que funda seu poder na capacidade de produzir a morte.

Por essas razões afirmamos que assim como toda prisão é política, essas execuções também são políticas e nos reuniremos em praça pública para lembrá-los e afirmarmos, sem vacilo, que não há perdão, nem esquecimento. E nisso está nossa alegria.


“Às buscadoras: Não deixem de buscar. Essas pessoas ausentes valem pelo sangue que herdaram, o de vocês. Não conhecemos quem lhes falta, mas conhecemos vocês e a nobreza da luta de vocês. Não se rendam, não se vendam, não desistam. Embora o horror que enfrentam não esteja na moda, sua causa é justa e nobre. E nenhum político pode dizer o mesmo. Sua persistente dignidade ensina e mostra o caminho. Esperamos que mais pessoas as vejam como nós, os povos zapatistas: com admiração e respeito.” 

(Carta do Exército Zapatista de Libertação Nacional aos coletivos de Madres Buscadoras, no México)