Boletim (Anti)Segurança #37
Em nome da segurança e do progresso:
“uma casa na praia não é um sonho”, o exército de Israel a fará
Em nome da segurança e do progresso: “uma casa na praia não é um sonho”, o exército de Israel a fará
Este boletim foi reformulado a partir de um artigo original cuja publicação se tornou inviabilizada por uma acusação de "parcialidade" e "politização" excessiva da análise, dado o uso do termo "genocídio", supostamente inadequado para uma abordagem acadêmico-científica. A intersecção entre o debate da tecnociência, de práticas de genocídio e da modernidade remete pelo menos à primeira metade do século XX, elucidando não apenas a falácia do argumento em prol da neutralidade da ciência e da tecnologia, como também o fato de que essa mesma neutralidade positivista da técnica produziu as condições para o extermínio de populações inteiras, tal como vemos na Palestina hoje.
Enfatiza-se, ainda, que o termo "genocídio" é reconhecido pela Convenção das Nações Unidas como um crime cometido com a intenção de eliminar, parcial ou completamente, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso¹. O século XX é testemunha frequente de episódios assim descritos, tal como visto na Namíbia em 1908, na Armênia em 1915, na Alemanha Nazista em 1939 e em Ruanda em 1994. Não por acaso, o conceito de “genocídio”, formulado em 1943 por Raphael Lemkin (2009), toma como base estes acontecimentos da primeira metade do século XX. Para além da morte física de indivíduos de um determinado grupo, o genocídio deve ser considerado como um “plano coordenado” de diversas ações com objetivo de minar e inviabilizar a existência deste mesmo grupo. O assassinato e a destruição de meios de sobrevivência são algumas das práticas que se inserem no processo genocidário.
Em um relatório da agência de pesquisa Forensic Architecture (FA), é demonstrado como desde outubro de 2023 as forças israelenses alvejam sistematicamente pomares e infraestruturas agrícolas vitais nos territórios palestinos, aumentando deliberadamente a fome e os privando dos recursos essenciais à vida². “No total, a Forensic Architecture identificou mais de 2.000 locais agrícolas, incluindo fazendas e estufas, que foram destruídos desde outubro de 2023, muitas vezes para serem substituídos por terraplenagens militares israelenses. Essa destruição foi mais intensa na parte norte de Gaza, onde 90% das estufas foram destruídas nos estágios iniciais da invasão terrestre”³. Em outro relatório da FA é demonstrado um padrão de ataque das forças militares israelenses a hospitais, compondo uma “intimidação e violência” enquanto componentes da invasão em curso⁴. A justificativa dada por Israel à Corte Internacional de Justiça (CIJ) - em resposta aos argumentos apresentados pela África do Sul solicitando a aplicação da Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio -, de que há um “esforço humanitário” em proteger vidas civis, como o alerta de ataque ou a indicação de “rotas seguras”, é inautêntica e não corresponde ao que ocorreu. A FA encontrou “oito casos em que a equipe jurídica israelense deturpou as provas visuais que citou, por meio de uma combinação de anotações e rótulos incorretos e descrições verbais enganosas”⁵.
Em paralelo a estas investidas, a taxa de mortalidade na atual incursão em Gaza supera a de todos os conflitos registrados no século XXI, segundo relatório da Oxfan, sem considerar os palestinos mortos na Cisjordânia desde outubro de 2023.
Qualquer tentativa de relativizar o referido cenário também demonstra “politização” e “parcialidade”, como na recusa do artigo supracitada. Decidimos, portanto, publicar essa versão do artigo como Boletim (Anti)Segurança, primeiro porque não reivindicamos neutralidade científica ou qualquer espécie de “boas práticas” no que se refere às tecnologias políticas de letalidade em massa; em segundo lugar, porque, a despeito das questões históricas e contemporâneas que explicam e justificam o massacre em Gaza, sua ocorrência e as reações a ela são uma evidência extrema de onde se pode chegar por questões de segurança. No limite, independente da classificação (acadêmica e/ou jurídica, segundo o Direito Internacional) do que ocorre em Gaza como genocídio, é em nome da segurança e da paz que se mata e se extermina indiscriminadamente naquela faixa de terra, ou seja, trata-se de uma política que encontra na forma-Estado sua imagem mais acabada. Por fim, e não menos importante, para nós é intolerável que tal massacre, com tamanha assimetria de forças, continue seja qual for o argumento.
Há quase 20 anos, o Plano de Retirada da Faixa de Gaza sinalizava para uma inflexão paradigmática no padrão de intervenção e gestão dos Territórios Palestinos Ocupados (TPOs) na forma do que tem sido identificado como uma política de equilíbrio estratégico entre a responsabilidade mínima e controle máximo sobre a população autóctone. Sob este marco, drones de reconhecimento aéreo, metralhadoras remotas, circuitos de CCTV, imagens sônicas, detectores de radiação, escavadeiras e barcos controlados à distância, cercas eletrificadas, entre outros dispositivos caracterizam a ocupação contemporânea de Gaza como profundamente atravessada pelo uso intensivo de tecnologias computo-informacionais.
No mesmo contexto, Israel gradualmente estabelecia-se como fornecedor de equipamentos de segurança de alta tecnologia para governos, forças policiais, agências de segurança e atores privados de setores estratégicos em pelo menos cem países ao redor do planeta, configurando Tel Aviv rapidamente como uma das mais relevantes capitais high tech do mundo. Fortemente impulsionada pela demanda local na primeira década dos anos 2000, o complexo industrial-militar serviu a centenas de programadores provenientes da indústria de tecnologia - fragilizada pela quebra da bolha ponto.com - como um espaço colaborativo facilitador para o desenvolvimento de produtos e serviços aprimorados pela experiência recorrente do teste em combate, experiência esta que ao longo das últimas décadas tem conferido à produção israelense uma percepção da legitimidade "verificada em campo" a nível global.
Consolidada como um pilar incontornável da economia nacional, a indústria da segurança cibernética permanece como uma porta giratória fundamental entre o Corpo de Inteligência (Unidade 8200) das Forças de Defesa de Israel (FDI) e o mercado de trabalho local e global, servindo a interesses não apenas das elites políticas e econômicas locais, mas a uma lógica ascendente e planetária de gestão, monitoramento e vigilância de populações vulneráveis (e inconvenientes).
À luz deste cenário, a atual incursão militar em Gaza parece representar a fase mais contemporânea do referido processo, adotando o uso intensivo de ferramentas de inteligência artificial como marca registrada tanto na produção sistemática de alvos quanto em campanhas de desinformação em massa. Pelo menos dois novos sistemas têm sido empregados contra populações civis palestinas desde Outubro de 2023, conforme levantamentos realizados até o momento por agências de notícias e organizações da sociedade civil.
Idealizado para identificar suspeitos vinculados ao Hamas e à Jihad Islâmica, o sistema Lavender, ao analisar dados massivos de cerca de 2,3 milhões de residentes do território, teria identificado, somente nas primeiras semanas da guerra, cerca de 37 mil suspeitos sobre os quais oficiais do exército teriam autorizado bombardeios, exigindo pouca ou nenhuma verificação humana sobre os alvos a serem abatidos. Adicionados ao sistema Lavender, softwares complementares são empregados para identificar a localização dos indivíduos selecionados. O Where's Daddy, também de uso intensivo desde outubro, emite também alertas automáticos aos oficiais responsáveis no momento em que os alvos determinados entram em suas residências familiares - razão pela qual cerca de metade dos mortos no primeiro mês da operação foram atingidos enquanto estavam em casa. Dispositivos de "smart shooting" e disparadores automáticos não são, entretanto, ferramentas isoladas das demais iniciativas típicas da ocupação digital dos TPOs, que incluem sobretudo ferramentas de monitoramento amplo e permanente da população palestina mesmo da Cisjordânia e Jerusalém. O sistema Pegasus do grupo NSO, associado a polêmicas levantadas em anos recentes no governo brasileiro⁶, representa um dos casos paradigmáticos das referidas iniciativas, contempladas pelo setor privado e estatal no interior de Israel.
Cabe aqui salientar a relação entre o uso deste imenso arsenal altamente tecnológico, como dispositivos de "smart shooting" e drones explosivos teleguiados, e o avanço das fronteiras de especulação imobiliária sobre território ocupado. A capa do presente boletim é uma montagem publicada nas redes sociais da empreiteira israelita Harry Zahav onde projeta-se, sobre as ruínas de uma cidade bombardeada, diversos projetos habitacionais que comporiam um conjunto residencial a ser ocupado. Acompanha a imagem a seguinte frase: "Nós da Harry Zahav estamos trabalhando duro para preparar o terreno para o retorno a Gush Katif. Foram iniciadas as obras de recuperação da área, retirada de resíduos e expulsão de invasores. Esperamos que num futuro próximo todos os raptados sejam devolvidos em segurança às suas casas, os nossos soldados regressem e possamos iniciar a construção na Faixa de Gaza e em toda a Gush Katif⁷”. Tal atividade da empreiteira, cujo histórico está cheio de tentativas de anexação de território palestino via construção e comercialização de condomínios habitacionais⁸, explicita a relação entre o uso ostensivo de dispositivos de destruição em massa e a "preparação do terreno" para a viabilização de novas formas de acumulação. Aliada ao Exército de Israel, manifestando este apoio, inclusive, mediante a divulgação de imagens de soldados segurando uma bandeira com a logo da empresa à frente de um tanque de guerra operantes, a empreiteira opera em uma esfera fundamental do movimento de dominação da forma mercadoria sobre a terra, seus agentes e sobre a forma que a vida se organiza em conjunto com o território para além de sua funcionalidade capitalística.
Combinando devastação e reconstrução; aniquilação de modos de vida e da terra; incorporação do território mediante ao afunilamento das possibilidades de reprodução espacial; o mais requintado aparato tecnológico às formas mais bárbaras e "arcaicas" de expansão fronteiriça do capital: as atividades da tal empreiteira simbolizam claramente como a "assim chamada acumulação primitiva", ao contrário de constituir um momento passado e estático da história do capitalismo, está ativa todos os dias do sul da Bahia⁹ ao sul da Faixa de Gaza e é baseada na construção de territórios inabitáveis/securitários para o sufocamento das formas de vida previamente estabelecidas e articula o setor público e privado de modo a garantir dinamicidade ao movimento violentamente expansivo da forma valor.
Ressaltam-se também casos de ferramentas de IA generativa que contribuem com a (re)produção de um imaginário orientalista e falacioso sobre o conflito associando figuras de crianças palestinas com armas e estereótipos racializados de "terroristas árabes". Ao mesmo tempo, algoritmos aprimorados por IA têm sido acusados de discriminação, ocultamento e cancelamento de produtores de conteúdos críticos às ações do Estado de Israel e favoráveis as reinvindicações palestinas por autodeterminação, tal como de conteúdo que simplesmente registram a violência das operações.
É pertinente salientar que o contexto israelo-palestino não inaugura, de forma alguma, a profusão de debates e preocupações em torno da intersecção entre a violência organizada e o ímpeto por um domínio de espectro total, associado a aparatos sociotécnicos de monitoramento remoto. Pelo contrário: trata-se de uma inquietação típica do contexto imediatamente posterior à derrota estadunidense na Guerra do Vietnã e exacerbada pelos atentados de 11 de setembro de 2001. A materialização mais atual deste imaginário distópico da modernidade tardia que se vê agora em Gaza, entretanto, sinaliza para a aceleração ainda maior de um processo de integração do campo de batalha à vida social e erosão da distinção "clássica" entre a "paz" e a "guerra" ou a "vida civil" e a "vida militar", processo este em curso pelo menos desde a virada do século, conforme já exaustivamente mapeado por diversos debates no interior dos estudos críticos de segurança.
O chamado da sociedade civil internacional pela exigência de um cessar fogo em Gaza e pela defesa dos direitos humanos nos territórios ocupados se amplia significativamente nos últimos meses - em particular desde os eventos recentes em Rafah - motivados pela evidente desproporcionalidade da força empregada pelas FDI e recuperando a memória da Nakba de 1948 e da Guerra dos Seis dias de 1967. É possível, nesse sentido, que dos escombros do tecno-genocídio atual em Gaza se consolide a percepção de que qualquer silêncio da comunidade internacional abrirá as brechas para a reincidência generalizada das práticas e políticas da Ocupação Digital da Palestina sobre populações vulneráveis ao redor do mundo.
Ao passo que a incursão em Gaza escalava, ainda em outubro, Israel começou a abrir licitações para companhias transnacionais de exploração de gás e petróleo na costa do Mediterrâneo como parte de uma agenda da administração de Netanyahu para projeção do país como um hub energético alternativo à Rússia na região. Alguns meses depois, circularam propagandas para a construção de condomínios de luxo em bairros bombardeados de Gaza (como exposto acima), e da construção do chamado Canal de Ben Gurion, através do deserto do Negev, como alternativa ao Canal de Suez, controlado pelo Egito. A presença palestina em Gaza é um obstáculo conhecido pela administração israelense para a condução dos referidos projetos, entre outros, ao redor dos Territórios Ocupados.
É fato que o genocídio não foi a alternativa privilegiada pelos administradores da colonização da Palestina que, ao longo das primeiras décadas no território, optaram pela exploração da mão de obra autóctone em uma série de empreendimentos para a modernização da infraestrutura do território. Desde o início dos anos 1990, sob a névoa de um processo de paz que converteu a gramática da libertação na neoliberalização do que restava da administração palestina dos territórios, Israel não apenas endurece políticas de restrições e fechamento das fronteiras da Ocupação, como incentiva centenas de trabalhadores imigrantes do sudeste asiático e do leste europeu, substituindo a "tradicional" mão de obra palestina adotada pelas primeiras gerações do colonialismo sionista e consolidando a população dos TPOs - e principalmente de Gaza - como uma população simplesmente excedente, objeto ideal para o investimento no crescente setor de acumulação pela repressão, e pela repressão altamente informatizada.
O regime genocida de Netanyahu, portanto, se beneficia pela adesão a sistemas de inteligência artificial - famosos pelo apelo à neutralidade científica - que passam de capturar gestos, movimentos, interações e dados, para a tentativa de produzir em larga escala novos paradigmas da verdade e da realidade. A governamentalidade algorítmica que, para Antoinette Rouvroy, já eliminava a existência singular do sujeito - com uma memória, uma experiência e um corpo - pela sua transformação em comportamentos antecipados, introduz também os dispositivos de reconfiguração do apagamento da Palestina, asfixiada pelo desenho de um futuro artificial do qual seu passado e presente são progressivamente suprimidos e exterminados.
As incursões israelenses em Gaza e seu extermínio hightech são um condensado extremo e macabro do que governa o planeta desde o final da Segunda Guerra Mundial: segurança policial planetária, banco de dados e extrema violência estatal. O que coloca a questão da segurança como um problema mais urgente que os estéreis debates do campo da representação política e seus temores em torno das formas da democracia. Isso porque esse aparato de massacre altamente tecnológico é mobilizado independente coloração ideológica do governo de turno, se movendo sem a necessidade do que poderia ser classificado pela Ciência Política como um governo autoritário ou ditatorial. O experimento da criação de um Estado no pós II Guerra evidencia o que é do que é feito o Estado Moderno; para além disso, de que Estado, democracia e capitalismo, assim como o tão desejado progresso, só se fazem com uma produção gigantesca de violência. Basta olhar para Israel. Mesmo subtraindo a variável da ocupação de Gaza, o que se vê é uma forma bastante acabada de uma democracia securitária.
¹ Tal definição é conforme a Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio. Veja mais aqui.
² ‘No traces of life’: Israel’s ecocide in Gaza 2023-2024 - Forensic Architecture
³ Ibidem
⁴ Destruction of medical infrastructure in Gaza - Forensic Architecture
⁵ An Assessment Of Visual Material Presented By The Israeli Legal Team At The Icj - Forensic Architecture. Ver ainda: Humanitarian Violence In Gaza - Forensic Architecture.
⁶ No ano em que se completam 10 anos do desaparecimento dos 43 estudantes de Ayotzinapa, em Guerrero, no México, vale lembrar o uso do sistema Pegasus pelas forças armadas e outras instâncias, como a Procuradoria Geral da República e órgãos de inteligência mexicanos. A espionagem alvejou telefone integrante do Grupo Interdisciplinario de Expertos Independientes (GIEI), grupo de investigação do caso, dois advogados que representavam parte dos familiares dos estudantes, além de outros alvos como ativistas e jornalistas. Adquirido em 2011 durante o primeiro governo Peña Nieto, seguiu sendo utilizado em AMLO como uma das tecnologias repressivas levadas a cabo pelo Estado, sobretudo por suas Forças Armadas. Veja mais nas seguintes notícias: Fifty people linked to Mexico’s president among potential targets of NSO clients - The Guardian; e Estado mexicano tropeça no caso Pegasus, do ‘software’ para espionagem política - El País. Acesso em 24 jul. 2024.
⁷ Gush Katif é o nome de um antigo bloco que continha 17 assentamentos habitacionais de judeus israelenses situado ao sul da Faixa de Gaza, entre a divisa de Rafah com o Egito. Em 2005, de acordo com o Plano de Retirada Unilateral de Israel, o Exército de Israel retirou cerca de 8000 colonos judeus de suas habitações e o território foi "transferido" aos palestinos.
⁸ Israeli Gov’t Uses Judicial Tricks to Legitimize Settlement Outposts – “Aley Zahav” Example - NBPRS
⁹ PM abriu caminho para fazendeiros matarem Nega Pataxó, dizem sobreviventes de ataque ruralista na Bahia - Brasil de Fato
Referências Bibliográficas
LEMKIN, Raphael. El dominio del Eje en la Europa ocupada: leyes de ocupación: análisis de la administración gubernamental: propuestas de reparaciones. - 1a ed. - Buenos Aires: Prometeo Libros; Caseros: Univ. Nacional de Tres de Febrero, 2009.