Boletim (Anti)Segurança #36
O legado securitário após 10 anos da Copa do Mundo FIFA no Brasil
Estamos no mês de junho de 2024, após exatos 10 anos da realização da Copa do Mundo FIFA de Futebol Masculino. Além das memórias das performances dentro do campo, a temática do legado e o que ele produziu retornam ao debate em torno deste megaevento. No campo da segurança, tem sido cada vez mais comum mobilizar a ideia de legados construídos junto a megaoperações, a fim de caracterizar o conjunto de materiais (armas, câmeras, veículos, sistemas eletrônicos e outros equipamentos da área) e de expertise (capacitação e especialização dos agentes) que são adquiridos e assimilados pelas forças e agências locais. Legados não são exclusividade de megaeventos, como se evidencia na tentativa de construção de um legado estratégico da Intervenção Federal no Rio de Janeiro, por exemplo. Entretanto, em operações como as realizadas para sediar a Copa do Mundo no Brasil em 2014, bem como em outros eventos de tal magnitude, o universo de táticas e padrões de atuação em cidades, normas e legislações que precisam ser atualizadas e/ou adaptadas é ainda maior. Isso ocorre porque esses eventos trazem novos agentes e dispositivos de controle, monitoramento e gestão de pessoas que se somam aos que já estão em vigor. No caso da Copa do Mundo, o “padrão FIFA” de segurança é um compêndio de medidas apresentadas como necessárias para a execução do evento que impactam na administração da segurança pública no país.
No entanto, de qual legado securitário estamos falando? Conforme a Newsletter Fonte Segura de 30 de novembro de 2022, pertencente ao Fórum Brasileiro de Segurança Pública, “o principal legado da Copa de 2014 não foi tecnológico, mas metodológico. As forças de segurança aprenderam uma nova forma de planejar e coordenar a segurança de grandes eventos. É pouco diante do volume de gastos realizados”. O investimento, conforme ainda a Fonte Segura, foi de R$957,5 bilhões entre 2011 e 2015. Mas, ao contrário do que se apresenta, este legado metodológico não é pouca coisa, pois se produziu algo altamente eficaz para o exercício de poder das instituições públicas, ampliando e aprimorando uma governamentalidade dos corpos nas ruas. Estamos falando da gestão de multidões.
A capacitação para crowd management (gestão ou gerenciamento de multidão) atende ao item VI do FIFA Stadium Safety and Security Regulations, que dispõe sobre a regulação de possíveis superlotações nos estádios e a quebra das “cercas de perímetro, portões ou catracas” (FIFA, 2012: 66, tradução nossa). Esse item pode parecer bastante específico e localizado, porém é importante registrar o que ele produz em termos de interpretação, pois, ainda conforme o item do manual de segurança, “devem ser elaborados planos de contingência para fazer face a situações de aglomeração excessiva de pessoas fora do perímetro exterior do estádio” (Ibidem). Ou seja, em termos de território, o espaço sobre o qual as forças podem atuar para controlar multidões em áreas urbanas ultrapassa o dos estádios onde se realizam os eventos, prevendo um controle e gestão de multidões dentro e fora deles.
Ainda, apesar de estar localizada como um requisito para a Copa do Mundo, o fato das forças de segurança apreenderem a gestão de multidões significa sua assimilação e possibilidade de adaptação e reaproveitamento em outros contextos, o que é um fenômeno corrente na produção das várias formas de engajamento militares e policiais. Por exemplo, o ato administrativo do então secretário de segurança pública do Rio de Janeiro, General Richard Fernandez Nunes, através da resolução SESEG nº 1.205 de 04 de julho de 2018, transformou o Batalhão de Policiamento em Grandes Eventos (BPGE), originalmente criado para atuação nos Megaeventos, em Rondas Especiais e Controle de Multidão (RECOM), tendo como um de seus encargos o “controle e gestão de multidões”.
Vale destacar que a Copa do Mundo foi um dos grandes eventos assinalados pelo Exército brasileiro como uma operação que produziu “lições aprendidas” para o engajamento das forças. A Copa do Mundo foi uma das 145 operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) realizadas pelas forças armadas desde 1992. Ainda que a primeira atuação doméstica dos militares após a ditadura civil-militar tenha sido no massacre de trabalhadores durante a greve de 1988 em Volta Redonda, Rio de Janeiro, sua participação na segurança da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento sediada na cidade do Rio de Janeiro, em 1992, mais conhecida como Rio 92, é oficialmente contabilizada como a primeira GLO. Desde então, outros eventos internacionais, como os jogos Pan Americanos (Rio de Janeiro, 2007) e a Jornada Mundial da Juventude (Rio de Janeiro, 2013) também contaram com a ação militar.
Contudo, para as Forças Armadas e, especialmente, para o Exército, a Copa foi um novo exercício de atuação interagências (que demandam coordenação entre as três forças e demais forças, como polícias e bombeiros, somados a agências civis), em que aprenderam a operar com a defesa química, biológica, radiológica e nuclear (QBRN), intensificaram cursos de contraterrorismo e aprimoraram práticas de comando e controle. Resumidamente, “comando e controle” é o termo militar (e policial) para se referir às atividades de inteligência e tomada de decisão concentradas em um órgão que coordena as operações. É ao órgão ou ao centro de comando e controle que se transmite o máximo de imagens e informações em tempo real para que os responsáveis da operação tenham consciência da situação e possam tomar decisões.
Dessa forma, mais do que em eventos anteriores, a Copa oficializou a presença militar no planejamento e coordenação das ações, principalmente considerando o fato de que a operação da Copa do Mundo foi concomitante a outra GLO em curso, a pacificação no Complexo da Maré, na cidade do Rio de Janeiro. A operação da Copa do Mundo pode ainda exercer práticas de comunicação social e contato com a imprensa, atividades estas extremamente importantes em contextos de operações urbanas nas quais vigoram GLOs, tendo em vista que se tratam de lógicas muito próximas de doutrinas de contrainsurgência e seu trabalho junto à opinião pública para influenciar corações e mentes. Apenas no Rio de Janeiro, todo esse conhecimento foi reaproveitado nos Jogos Olímpicos em 2016 e novamente mobilizado no planejamento de reestruturação da segurança pública durante o contexto da Intervenção Federal em 2018.
Além da assimilação do conhecimento pelas forças armadas, ressalta-se a integração da segurança junto às demais forças do Estado como aspecto importante do governo sobre a população. É a partir da Copa do Mundo que se instalam os Centros Integrados de Comando e Controle (CICC) que, em locais como o Rio de Janeiro, contribuíram para a produção de espaços de monitoramento de larga-escala, como o Centro de Operações Rio (COR). Tais requisitos foram colocados pelo Manual de Segurança da FIFA e assimilados no sistema securitário-jurídico brasileiro como uma necessidade para antecipar e gerir catástrofes, distúrbios, ataques e outros riscos e ameaças potenciais. Ademais, é via eventos como estes que se reitera a visão maquínica da cidade, em uma postura de sobrever e antever o que acontece nas ruas e em meio à população.
Muito dessa preocupação com o monitoramento, vigilância e antecipação que caracterizou a realização da Copa do Mundo se concentra na chave do combate ao chamado terrorismo, que é projetado em eventos/espaços onde há aglomerações de possíveis alvos mais visados de ataques. Dessa forma, outro legado que se produziu e teve profundos impactos na gestão da segurança pública brasileira foi a Lei Antiterrorismo. A Legislação foi sancionada em 2016, porém foi no contexto dos protestos de 2013 e da realização da Copa do Mundo (com a subsequente realização dos Jogos Olímpicos) que o tópico veio à tona. Mais especificamente, para a Copa da FIFA, medidas de contraterrorismo também foram apresentadas como requisito para a realização do evento.
A retórica de contraterrorismo e contrainsurgência, como forma de segurança preventiva, se traduziu como processo de criminalização de contingentes da população em determinadas regiões das cidades. Este é outro legado que, com a explosão de manifestações e revoltas de junho de 2013, passando pelos protestos contra a Copa, se fortificaram e permanecem na sociedade brasileira. Lembremos das 23 pessoas que foram acusadas de “formação de quadrilha” e presas na véspera da final da Copa de 2014, em 12 de julho de 2014. Em 19 de março de 2024 o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro anulou as condenações, mas ainda assim somam-se quase 10 anos de perseguição e violência, utilizando da criminalização para disputar a memória desses protestos a fim de estabelecer o controle das ruas.
A criminalização dos movimentos sociais é uma linha política internacional atual, que tem em vista manter a guerra funcionando. É preciso temer o terrorismo, garantir o domínio das riquezas com a exclusão crescente, é preciso justificar o ataque aos pobres e manter a população sob controle, fazendo parecer que não há guerra nenhuma em curso. Os megaeventos caem como uma luva nesse contexto. Da mesma maneira que o tráfico de drogas justifica a criminalização da pobreza, o medo do terrorismo, a segurança pública nos megaeventos justificam as leis antiterrorismos, os tribunais de exceção, toda a gentrificação, e também toda a repressão e criminalização que a acompanha. Não é possível ser uma cidade cosmopolita, entrar para o ranque de grandes polos comerciais do mundo, sem sediar megaeventos, e não é possível sediar megaeventos sem criminalização (Jourdan, 2018: 136).
Apesar da afirmação dos especialistas de que o legado da Copa foi mais metodológico do que tecnológico per se, foi a partir desse evento que se acelerou a aquisição e testagem de algumas das principais tecnologias de segurança voltadas para a vigilância e controle de populações.
A produção dos Centros Integrados de Comando e Controle (CICC) e desses espaços de monitoramento, vigilância, planejamento e decisão também é alimentada por sistemas eletrônicos. Foi na Copa do Mundo que o Exército, por exemplo, passou a utilizar o sistema Pacificador, um software específico para comunicação e transmissão de dados em tempo real para facilitar a coordenação das operações do tipo policiamento. Também foi na Copa do Mundo que a força aérea pôde testar, pela primeira vez em um grande evento, a funcionalidade dos drones militares para vigilância do território. Todo esse aparato tecnológico é apresentado como benéfico, tanto no sentido de atender às necessidades do megaevento em questão, quanto na possibilidade de atualizar as forças a fim de alcançar as principais tendências e inovações na área.
E este legado tecnológico ultrapassa as fronteiras do Estado brasileiro. É o caso do uso de ferramentas de reconhecimento facial para entrada em estádios e monitoramento durante as partidas. Apesar de não ser uma diretriz do FIFA Stadium Safety and Security Regulations, o reconhecimento facial passou a estar cada vez mais presente nos estádios, com o argumento de “coibir a violência”. Em Copas do Mundo, o uso inaugural se deu em 2014 no Brasil, no estádio do Beira Rio. Segundo reportagem publicada no portal de notícias UOL: “Beira Rio irá testar sistema de reconhecimento facial contra bagunceiros”, com intuito de “impedir que torcedores proibidos de frequentar estádios possam ver jogos normalmente”. Já na Copa de 2018 na Rússia e em 2022 no Catar, o uso foi ampliado a partir do precedente brasileiro.
O reconhecimento facial é um problema em diversas dimensões e cria um sistema de identificação criminal de múltiplos efeitos securitários. No entanto, mesmo se olharmos apenas para sua alegada eficácia e precisão, baseada em operações algorítmicas, ainda há uma enorme margem de erro. O que levou, por exemplo, ao falso reconhecimento de 2.000 pessoas como criminosas durante a final da Liga dos Campeões da Europa de 2017 em Cardiff, País de Gales. Poderia se argumentar que a eliminação da margem de erro resolveria o problema. Não resolve.
As operações algorítmicas de reconhecimento facial, que se alimentam da extração e mineração constante de dados, além da interferência externa de programadores na criação dos códigos, resulta, até o momento, em identificações profundamente caracterizado pela violência racial imbuída no processo de codificação e ‘aprendizagem’ dos algoritmos. Ilustrativo deste entendimento foi outro erro que gerou a detenção de um torcedor do Confiança na final do Campeonato Sergipano de Futebol em 2024. Não bastasse o absurdo da detenção, houve um constrangimento público, obrigando o torcedor a sair da arquibancada e atravessar o campo algemado. Nos EUA, similarmente, uma pesquisa recente revelou que grandes algoritmos de reconhecimento facial erram 34% a mais no caso de mulheres negras, em comparação com homens brancos. Percebemos como o suposto uso técnico não se afasta do uso político desses instrumentos.
Isso sem contar a violência exploratória de trabalhadores subalternos para alimentar e produzir essas redes de dados. Como reforça a campanha “Tire meu Rosto da sua Mira”, mesmo que houvesse a possibilidade de algoritmos perfeitamente eficazes na identificação de pessoas sem viés, o mecanismo permanece um recurso invasivo de vigilância persistente sobre populações.
Em 2027 o Brasil sediará novamente uma Copa do Mundo de Futebol FIFA, dessa vez feminina. O que significa que o “legado” da segurança pública que foi mobilizado na Copa de 2014 será direcionado novamente à realização de outro megaevento. Destacamos isso uma vez que o Fifa Women‘s World Cup 2027™ Bid Evaluation Report, que avaliou a candidatura do Brasil como sede da Copa do Mundo de Futebol Feminino de 2027, registra em seu item 6.3.3 Safety and Security a seguinte conclusão sobre o risk assessment (avaliação de risco):
“A proposta do Brasil para 2027 apresentou uma estrutura que permitiria o desenvolvimento e a entrega de uma estratégia de segurança e proteção adequada às exigências do campeonato. O impacto potencial do crime em todas as partes interessadas deverá ser levado em consideração no desenvolvimento da estratégia. No entanto, o proponente tem um forte histórico no planejamento e implementação de um conceito de segurança e proteção para grandes eventos esportivos internacionais.” (p. 155).
E ainda, reconheceu-se de forma “notável” que:
“o licitante apresentou uma garantia governamental total sobre segurança e proteção, comprometendo-se com tais resultados e requisitos, o que ajuda a demonstrar que infraestrutura e recursos suficientes serão disponibilizados para garantir a segurança do campeonato” (p. 154)
Assim, 10 anos depois da Copa de 2014, o legado construído pela e para a segurança é um legado de gestão de pessoas: práticas legislativas, militares, policiais e de outros agentes voltadas para otimização constante de seus próprios sistemas, tendo as populações como alvo e o teatro de operações sobre as quais riscos e ameaças são antecipadas, monitoradas, controladas. Em meio ao discurso de mais desenvolvimento, indústria, tecnologia e inovação junto à promessa de um novo megaevento, é importante tensionar e questionar os argumentos tão categóricos em relação à necessidade dessas medidas que prometem melhorias no campo da segurança, pois essas melhorias se orientam por uma lógica militar/policial de gestão das pessoas e dos ambientes.
¹ Como por exemplo, nas últimas duas décadas o Brasil realizou os jogos Pan Americanos de 2007, Copa das Confederações em 2013, Jornada Mundial da Juventude em 2013, Olimpíadas e Paraolimpíadas Rio 2016, Copa América em 2019 e 2021, Copa do Mundo FIFA sub-17 de 2019.
² Disponível em: O legado da Copa do Mundo de 2014 - Fonte Segura.
³ “Conjunto constituído pelas instituições, os procedimentos, análises e reflexões, os cálculos e as táticas que permitem exercer essa forma bem específica, embora muito complexa, de poder que tem por alvo principal a população, por principal forma de saber a economia política e por instrumento técnico essencial os dispositivos de segurança” (Foucault, 2008: 143-144).
⁴ Dados atualizados em 2022 pelo Ministério da Defesa. Disponível em: Garantia da Lei e da Ordem — Ministério da Defesa.
⁵ Ver Brito e Oliveira, 2013.
⁶ O conjunto geral de lições aprendidas e legados para o Exército se encontram disponíveis na Biblioteca Digital do Exército.
⁷ Atualmente, o termo Comando e Controle é acompanhado de outras atividades relacionadas à produção de inteligência e comunicação que colocam as forças de segurança como observadores persistentes dos territórios e população sobre o qual atuam. Ver Kyle Grayson (2016) e Lucy Suchman (2023).
⁸ Ver Ferreira, 2023.
⁹ Ver Bruno, 2018.
¹⁰ Para saber o processo, as memórias e as resistência em torno das manifestações de 2013 e das prisões dos 23, ver: Jourdan (2018).
¹¹ Justiça absolve 23 condenados por manifestações contra a Copa de 2014.
¹³ Na Copa do Mundo de 2018 na Rússia, contratou-se uma empresa de software de reconhecimento facial “expert in video analytics solutions powered by artificial intelligence”, a NTECHLAB. No site oficial, em sua aba “histórias de sucesso” encontramos uma descrição da implementação e resultados. Veja aqui. Já na Copa de 2022 no Catar, criou-se um centro de comando e controle nomeado de “Aspire”, em referência à “Aspire Zone”, que é um complexo esportivo do Catar. Há um relatório do próprio Estado do Catar que coloca as informações gerais acerca do “legado digital”. Veja aqui.
¹⁴ 2,000 wrongly matched with possible criminals at Champions League.
¹⁶ Idem.
¹⁷ Ver Pasquinelli, 2023.
Referências Bibliográficas
BRUNO, F. Visões Maquínicas da cidade maravilhosa: do centro de operações Rio à Vila Autódromo. Em: BRUNO, F. et al. (Eds.). Tecnopolíticas da vigilância: perspectivas da margem. [s.l.] Boitempo, 2018. p. 239–256.
FIFA. FIFA Stadium Safety and Security Regulations. Tokyo, 2012. Disponível em: https://digitalhub.fifa.com/m/682f5864d03a756b/original/xycg4m3h1r1zudk7rnkb-pdf.pdf. Acesso em: 20 jun. 2024
FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
GRAYSON, K. Cultural politics of targeted killing: on drones, counter-insurgency, and violence. London New York: Routledge, 2016.
JOURDAN, Camila. 2013: memórias e resistência. Prefácio de Edson Passetti. Rio de Janeiro: Circuito, 2018. (coleção ataque).
PASQUINELLI, Matteo. The Eye of the Master: a Social History of Artificial Intelligence. London. Verso, 2023.
SUCHMAN, L. Imaginaries of omniscience: Automating intelligence in the US Department of Defense. Social Studies of Science, v. 53, n. 5, p. 761–786, out. 2023.