Boletim (Anti)Segurança #35

(des)envolver: 

extrativismos e produção de violências

(des)envolver: extrativismos e produção de violências

 

"O que é desenvolver? É tirar o envolvimento. É desconectar. É deslocar de. [...]  Eu quero me envolver com a terra, com as águas. Eu quero me envolver com a vida. Eu quero viver de forma envolvida, não desenvolvida. Pediu para desenvolver e está aí as crises.  Por que tem crise? Porque está desenvolvido. As catástrofes, os desastres são fruto do desenvolvimento.  Só existe crise no desenvolvimento. No envolvimento não tem crise."

(Antônio Nego Bispo dos Santos. 2023.)


Em seu livro Brutalismo, Achille Mbembe (2021) analisa as atuais relações de forças e exercícios de poderes através das suas capacidades de fissurar e fraturar, que “recria não só o humano, mas também outras espécies, efetivamente” (Mbembe, 2021: 14). Tais ações se assemelham com os processos próprios da mineração, quando na busca por extrair gases e energias se dinamita todo o ecossistema, o que nos leva a avaliar que a “função dos poderes contemporâneos é, mais do que nunca, possibilitar a extração, o que exige uma intensificação da repressão” (Ibidem). Este resgate da proposta do Mbembe nos interessa para aprofundar uma discussão já abordada no nosso boletim (Anti)Segurança de número 30, “Mais do mesmo em Desenvolvimento e Segurança: o Novo PAC (in)sustentável”. Agora, apesar de ainda se tratar de Mais do mesmo em Desenvolvimento e Segurança, tencionamos o binômio extrativismo e violência.

A predação capitalista avança sobre os territórios sob a forma de um neoextrativismo que, apesar do “neo”, atualiza a contínua política colonial (de extração) que sustenta o Estado brasileiro e o capitalismo (em suas faces nacional e global). Disso resultam conflitos socioambientais, lutas de resistência contra a destruição e transformação mercadológica da terra. A realização dos avanços de mercado, por sua vez, é garantida pelos dispositivos de segurança do Estado ou de empresas privadas. Tais avanços buscam criar novas formas de acumulação do Capital e de expandir os canais de escoamento das mercadorias, movimento necessário para existência e desenvolvimento do próprio sistema (Burnett, 2024: 4).

A construção de hidrovias ilustra bem este cenário. Com um investimento de 4,1 bi pelo novo PAC, a construção de hidrovias ameaça todo o ecossistema local e a vida de populações ribeirinhas, pesqueiras, indígenas e quilombolas. Sob o custo dessas vidas (sobretudo das suas formas de vida), busca-se atender a demanda de escoamento de commodities e maior eficiência de logística do mercado global. A hidrovia Araguaia-Tocantins (PA), por exemplo, que foi contemplada com recursos financeiros no novo PAC, “pretende implodir e dragar 177 km do rio Tocantins, incluindo a localidade de Pedral do Lourenço (também conhecida como Pedral do Lourenção), localizada em Itupiranga (PA)”, sendo que essa “localidade é considerada prioritária para a subsistência de uma série de comunidades ribeirinhas, pesqueiras, quilombolas e indígenas, como os das etnias Krahô-Kanela, Krikati e Apinajé, que terão seus modos de vida inviabilizados pela destruição do Pedral”.

Um exemplo bastante preciso de como os investimentos públicos em hidrovias pelo Novo PAC favorecem, ao mesmo tempo, a quebra de confluências de biointerações de um território e o aprimoramento logístico para escoamento de mercadorias (privadas) é a dragagem da Lagoa Mirim (RS). A obra de 42 milhões de reais, financiada com dinheiro público, ao desobstruir os sedimentos do fundo da lagoa, mudará a configuração hidrográfica da lagoa - e de todas as relações que com ela são estabelecidas - ao liberar metais pesados presentes nos sedimentos dragados e ao provocar erosões em suas margens com o único objetivo de viabilizar o transporte de grãos e “outros ativos fundamentais para a movimentação da economia”. Através desta grande empreitada desenvolvimentista do Governo brasileiro, novamente, financiada com dinheiro público - “de nosso suor, custando nosso sangue”-, os empresários uruguaios pretendem começar a exportar cerca de 1,4 milhão de toneladas de grãos aos portos de Rio Grande (RS) e Pelotas (RS). Para além de toda a problematização já conhecida sobre a violência necessária na forma-latifúndio de produção, parte fundamental do processo de produção da mercadoria escoada por este novo canal do PAC, há de se atentar para todas as formas de violação/negação de interações humanas e não-humanas que fogem ao sentido da valoração do valor. Ou, como bem ilustrado anteriormente, há de se atentar para estas formas de fissura e fraturar que a prática infernal da logística deixa pelo caminho em seu eterno movimento de reposição. 

As figuras da fissura e da fratura podem ser muito proveitosas para discutirmos como as grandes obras de “desenvolvimento sustentável” do Novo PAC violentamente endireitam/conformam/condenam os fluxos dos territórios a se tornarem meios para a efetivação total da linha de montagem desterritorializada, nomeando como norma a vida logisticizada pelas dinâmicas de reprodução do capital e humilhando formas outras de vida que escapem a sua funcionalidade. Isto é, sob a violenta imposição das cercas dos latifúndios - sendo eles de vacas, soja, cana-de-açúcar ou de energia eólica - e da dragagem de rios que impossibilita o livre acesso de seres-vivos à água, está posta a lógica do desenvolvimento sustentável, da revolução verde e da vanguarda do progresso. A única parte desta lógica que fica pelo caminho, assim como as humilhações esquecidas que a organização material e tecnológica deste mundo impõe, é a de que se trata do desenvolvimento e do aprimoramento das estruturas que garantem dinamicidade ao movimento autônomo do não-vivo. 

A centralidade que damos à análise do Novo PAC, para além de sua convivência cronológica com a escrita do presente texto, reside no fato de que ele é a expressão cristalina da aposta desenvolvimentista da gestão social-democrata brasileira na era da acumulação flexível, agora, no entanto, governado sob uma conjuntura de crise-total-permanente verdadeiramente catastrófica. A não problematização e até mesmo o apoio por parte de diversos setores das esquerdas a essa eterna busca pelo progresso, que se materializa em “projetos que adoecem e massacram nosso povo, além de devastar impiedosamente a natureza”, deve ser observada como de fato é: hipócrita e reacionária. 

De fato, essa lógica desenvolvimentista está se confrontando com respostas concretas de que a expulsão de comunidades quilombolas de suas terras em função do cercamento necessário à instalação de geradores eólicos e a construção de barragens para a irrigação de perímetros destinados à agricultura privada de exportação pode não trazer os resultados esperados, ao menos não os que dizem respeito à sustentabilidade. Isso leva em conta a mais recente tragédia do Rio Grande do Sul, mas, também, todos os dados que apontam para uma emergência climática e para a extinção de biomas por conta de ações antrópicas. As crises do mundo do trabalho, da política representativa e, emergencialmente, a crise climática, convergiram-se em uma catástrofe que, aos olhos de amplos setores das esquerdas, só pode ser combatida com mais produção, mais progresso, mais desenvolvimento, mais ordem, mais representação e mais segurança. Entretanto, talvez esta seja a brecha necessária para, como diz uma grande liderança da Teia dos Povos, ousarmos ocupar os latifúndios produtivos (ou as universidades produtivas) e questionarmos a lógica e os sentidos da produtividade que está posta, puxando o freio de emergência. 

Em nosso boletim de número 22 — Garimpo e Mineração na Amazônia ocupada pelo Estado brasileiro — é possível localizar como a “existência desses povos se choca com outros interesses: nomeadamente a sobrevivência do Estado brasileiro e a continuidade e expansão do capitalismo global, cuja demanda insaciável por recursos é justificada pela busca por progresso dentro de uma ordem específica para o desenvolvimento econômico. Minérios como carvão e ouro sempre foram considerados recursos essenciais, especialmente no território ocupado pelo Estado brasileiro, onde sua abundância é motivo de atenção de grupos nacionais e internacionais”.

Fraturar e fissurar para extrair minérios e outros recursos só se torna possível com o uso da violência, seja ela feita diretamente pelo Estado ou através do aval e apoio a grupos armados. Quanto a este último, lembremos do trágico evento ocorrido em 21 de janeiro de 2024, quando um grupo de fazendeiros, que se autointitulam Invasão Zero, alvejaram contra o povo indígena Pataxó-hã-hã-hãe no território Caramuru-Catarina Paraguassu, município de Potiraguá, no extremo sul da Bahia. Segundo relatos dos indígenas e informações da Apib, a ação dos fazendeiros contou com colaboração da PM da Bahia e culminou na execução de Nega Pataxó, além de deixar gravemente ferido seu irmão, Cacique Nailton, e outras pessoas feridas e torturadas na ação.

A relação entre Estado e capitalismo é de co-dependência, na qual não há possibilidade de existência de um sem o outro. Por isso tamanho apoio das forças do Estado nas investidas devastadoras do Capital, inviabilizando e destruindo os modos de vida e as próprias vidas de povos e coletivos que se opõem a este modelo de existência. Pois, apesar do véu democrático de proteção e avanço de direitos das populações indígenas, pesqueiras, quilombolas e/ou ribeirinhas, o que se mantém como necessário é a existência e o desenvolvimento do Estado e do Capital e que, se for preciso, passa por cima do legalismo democrático com tratores e dinamites. Vê-se que não há mágica. Essa forma de organização política e social pode sim ser democrática, mas o que é imprescindível em sua atuação é a organização e a distribuição de um imenso aparato securitário legal e ilegal. Em resumo: ela é democrática, mas pode deixar de ser e, enquanto for, será uma democracia securitária.

Este modelo de ação política reverbera em outras áreas, além da luta pela terra. O neoliberalismo — enquanto racionalidade e modo de governo que atravessa o Estado e o capitalismo — implanta a lógica extrativista e da mineração, da fratura e fissura, em outras esferas da vida. É o caso do atual contexto das políticas educacionais no Brasil. No momento de escrita deste boletim, as Universidades Públicas estão em greve conjunta entre as categorias de professores, servidores e estudantes, que lutam contra o descaso e a precarização que acomete a educação superior. O LASInTec,  enquanto grupo de pesquisa, está vinculado à Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e, de acordo com o pronunciamento da Reitora, só tem verba para funcionar até setembro. As precárias condições de trabalho e de estudo fraturam o ambiente coletivo que a universidade pode proporcionar, com o intuito de aumentar a “produtividade” das produções — mesmo que estas em nada se relacionem com a função social da universidade. 

O papel crítico e de apontamento dos problemas que é possível nas salas e corredores da universidade são substituídos por uma prática própria extrativista: implodir o ambiente universitário para a extração de dados e informações, cujo foco é atender uma demanda global de escoamento das produções (os rankings universitários). O vocabulário não se altera, pois os dados são capturados através de uma “mineração” e, novamente, a possibilidade se dá pela violência: seja nas repressões às manifestações, seja pela falta de políticas de permanências estudantis ou afirmativas àqueles que não possuem condições de se manterem enquanto estudantes. É neste ponto que se compreende a oposição de muitos integrantes da comunidade universitária à greve: “não podemos parar a produção!”. Impõe-se, sob argumentos diversos, a continuidade da produção de estudantes, de capital humano, de assistências, de papers, enfim, “reclamem à vontade, isso é da democracia, mas não parem de produzir!”. Isso é democracia e capitalismo.

A racionalidade extrativista deve ser combatida, uma vez que ela permeia a vida em suas diversas esferas. Seja na luta pela terra, seja na educação, extrativismo e violência se combinam para o desenvolvimento e segurança do Capital e do Estado.

¹ Boletim (Anti)Segurança #30.pdf

² Novo PAC

³ Mapa de conflitos: Hidrovia Araguaia-Tocantins ameaça subsistência de comunidades ribeirinhas, pesqueiras, quilombolas e indígenas

gov.br: Governo avança no estabelecimento da hidrovia da Lagoa mirim

Carta aberta de comunidades e organizações populares do Ceará ao presidente Lula emitida em 12 de dezembro de 2023. 

Modal: Início da dragagem da Lagoa Mirim abre caminho para terminal graneleiro uruguaio

Interessa notar a relação que se estabelece entre a noção de fissura e fratura, de Mbembe, e a figura do endireitamento, elaborada por Fred Moten e Stefano Harney. 

Boletim (Anti)Segurança #22.pdf

Para uma discussão mais ampla desse ocorrido, ver: Policiamento e luta pela terra no sul da Bahia

¹⁰ Folha de S. Paulo: Unifesp só tem dinheiro para funcionar até setembro, diz reitora

Referências Bibliográficas


BURNETT, Frederico L. O cativeiro da Terra e do Trabalho: Política neoextrativista e planejamento em São Luís, Maranhão. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, [S. l.], v. 26, n. 1, 2024. DOI: 10.22296/2317-1529.rbeur.202415pt. Disponível em: <https://rbeur.anpur.org.br/rbeur/article/view/7401>. Acesso em: 24 maio. 2024.

MBEMBE, Achille. Brutalismo. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo: n-1, 2021. 

MOTEN, Fred. HARNEY, Stefano. Tudo Incompleto. Tradução de Victor Galdino e viniciux da silva. São Paulo: GLAC, 2023.